terça-feira, 20 de setembro de 2011

O velho e a criança


Existe uma criança sozinha. Num parque com balanços altos, escorregadores enormes, areias e aqueles brinquedões onde podemos nos pendurar e escalar até chegar no topo, como fossemos nós mesmos algum tipo de homem-aranha. A criança brinca. Não se pergunta. Apenas fala consigo as próprias coisas que está fazendo. “ Agora vou construir uma caverna na areia”. “Agora vou ir o mais alto que posso no balanço”. “ Agora vou...”.

A gangorra gira rápido. “Acho que ficarei tonto”. Parado o mundo parece rodar ao nosso redor. A criança olha para o céu e não vê astros. Um rodamoinho, igual daquele filme “twister”, parece drená-la e ela cai deitada na areia. A criança brinca. Não se pergunta.

Um homem velho, alto, carrancudo, sério e com ar maléfico cutuca o ombro da criança que não viu o tempo passar. O velho aponta para fora do parque. É tudo cinza. Nebuloso. Fosco. Sem vida. A criança não quer sair do circulo de areia que é o playground. O velho a pega forte pelas mãos e a obriga a olhar por todos os lados. É tudo cinza. Ela quer brincar. Por que não pode? Se pergunta.

É tarde. O velho diz. E arrasta uma vasilha daquelas de colocar comida para o cachorro. Tem alguma coisa estranha lá dentro. Apontando, o velho sugere que a criança coma o que tem lá. Ela olha em sua volta. Está tudo cinza. Não quer comer. Parece ruim. O velho enfia o rosto da criança na comida. É amargo. “Tenho ânsia”. Ela vomita em meio ao cinza e surge um buraco no chão. O velho aponta aos arredores. Não há nada. Tudo cinza. Ela vomita. O buraco se amplia. Ela desfalece.

Acorda num parque com balanços altos, escorregadores enormes, areias... Ela volta a sorrir. Mas no intimo, sabe que lá fora está tudo cinza. A criança brinca. Não se pergunta.

Num deslize súbito e acidental, fere seu joelho. Quer chorar. Mas não chora. Continua a brincadeira e camufla a dor. “Agora vou destruir a caverna que construi”. “Agora não vou balançar, vou dependurar no balanço”. “Agora vou...”. Um homem velho, alto, carrancudo aparece e lhe dá um tapa forte. Ela quer chorar. Mas é tarde. Não viu a hora passar. Os dedos do velho apontam pra fora. Está tudo cinza. Tem um buraco e uma vasilha daquelas que a gente coloca comida pro cachorro. Ela se aproxima do buraco. Sente algo estranho. “Mas eu nem comi aquela comida ainda”. Quanto mais perto do buraco, maior o mal estar. Come. Vomita. O buraco aumenta conforme ela vomita lá. A criança vê uma estrela fraca lá no fundo do buraco. Vomita mais. Desfalece.

Acorda num parque com balanços altos, escorregadores enormes, areias... Ela volta a sorrir.

Nunca mais quer sair do parque. Lembra-se da estrela. Sobe ao topo do escorregador. “Eu sou o sol!”. Brinca. Sem perguntas. Até que o velho volta, mais depressa que das outras vezes. Não aponta. Não sugere. Não mostra o cinza. Sussura no ouvido “você não viu estrela alguma”. E o parque fica cinza. Nebuloso. Tudo some. Permanece a vasilha de comida ruim. E o velho obriga a criança. Ela come. Vomita. Buraco ainda maior. Desfalece.

Acorda num parque com balanços altos, escorregadores enormes, areias... Ela volta a sorrir. Mas no intimo, sabe que até o parque está cinza e que não tem estrela alguma. A criança brinca. Não se pergunta. Falece.

0 comentários:

Postar um comentário