domingo, 6 de dezembro de 2009

Quando de nada importa o mundo...

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Quando todo mundo disser que devo mandá-la embora, não darei ouvidos. As portas desde sempre deixei abertas e você saberá o caminho de volta se quiser ir e voltar ou apenas ir. Pouco ligo para o alheio sendo que você é a única estrela desse meu universo escuro e sem vida. Pouco importa se há outras galáxias quando tudo que há de belo reside em seus olhos flamejantes, em seus lábios de big-bang, em seu corpo de infinito...

Quando tudo se tornar velho te apertarei firme em meus braços e essa velha firmeza tornará tudo presente novamente. Nem novo, nem velho, apenas presente novamente; doloroso e absoluto presente, assim como a própria vida que já passou.
Quando você se sentir confusa serei eu a exclamação que nem sempre te dará respostas, mas muitas vezes te dará dúvidas, mais dores, mais prazeres e alegrias e tristezas e não me importarei quando o mundo te impulsionar para o lado de fora da porta que está aberta. Não importa qual seja minha posição no mundo, a estrela sempre brilhará no mesmo ponto e sempre será visível do mesmo modo.

Quando duvidarem de meus sentimentos, quando eu duvidar de meus sentimentos, darei autonomia ao meu coração que falará em silêncio, e quando as veias começarem a fraquejar e o sangue correr mais lento, te levarei a minha alma e lá continuarei te nutrindo. Até mesmo quando a vida que lhe dou se transformar em morte por causa das chagas dos pesares e incertezas, haverá inúmeros pedaços de sua luminosidade em algum lugar do que restar de mim.

Assim ouso afirmar sua imortalidade. Que não importa o nada nem o tudo, e que estás para além de idealizações pois mesmo sendo como um sonho personificado, morrendo todo o sonho, você continuará existindo como única e mais bela estrela que já houve em meu céu negro. Seu brilho em mim é real e tem aroma de esperança... "como se viver valesse a pena"... e nada pode apagá-lo... Nem sua ausência falsa, nem mesmo a morte...
A luz quando forte demais perdura para sempre, assim como as sombras dos pequenos astros que vemos, assim como você de mil formas, humanas e divinas, reluzindo em minha vida tão frágil e perecível e real, e em meus sonhos tão firmes, tão eternos e tão... “sonhos” apenas; entre o sonho e a verdade você é o sonho e a verdade. Nada mais que isso.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Quereres...

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As pessoas, todas elas, não precisam ser boas para viver, mas lutam sempre em busca da "bondade" pois querem muito isso; não precisam também se embriagar, mas sempre estão buscando modos de aliviar o fardo de uma vida tão sem sentido, por que querem muito isso.

Todos podemos sobreviver em meio a uma guerra, o risco de morte sempre está presente afinal de contas, mas não queremos guerrear e tentamos sempre evitar brigas.
Não precisamos nos preocupar com nenhum bem estar, porém estar bem é algo que almejamos muito.
O mundo não precisa de paz, de vinho, de sorte ou azar, de bem ou mal, de sabores doces ou amargos, mas parece girar apenas para propiciar esses tipos de dualidades...

Ninguém precisa de muita coisa para viver e deixar de viver.
Basta características físicas e naturais para que respiremos e fiquemos em pé, caminhando rumo ao abismo que espera para derrubar um a um, logo a frente.
Basta o solo abaixo de nosso corpo para continuarmos jogados feito crianças abandonadas num playground enjoativo, mas queremos ter pais para nos ensinar coisas, queremos ter amparo, queremos ter até mesmo um Deus...

Todas as pessoas não precisam de coisa alguma; nem mesmo da vida de uma outra pessoa, mas querem de todo jeito que os queridos vivam.
Todas as pessoas precisam sequer de suas próprias vidas, mas colocam a vida própria como vontade pétrea e universal...

Desse mesmo modo, eu não preciso ver seus olhos como sóis e você como um universo, mas quero ver assim. Não preciso reviver coisas passadas em minha memória, pois isso não mudará de maneira prática meu presente, mas quero me embriagar no doce de nossos momentos.
Posso muito bem viver sem a dor da saudade, e posso mais ainda morrer de saudade, mas opto pelo meio termo.
Resumindo, não preciso do seu amor para viver; mas é no seu amor que encontro a síntese de todas as vontades e quereres do mundo.
E ele é tudo o que quero... mesmo sendo tudo que não preciso ter.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Um oceano de recordações

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No silêncio de um quarto vazio ouço sua voz, mas não a entendo.
A vastidão de um lugar habitado apenas por reflexões e memórias não permite que coisa alguma seja compreendida. Pouco importa, afinal, não há o que compreender realmente...
Basta-me ouvir sua voz maviosa sussurrando uma coisa qualquer e tirando meu fôlego; afogando-me sem querer no enorme mar de doces recordações:...



...de bons abraços; de bons silêncios; de seus olhos tão profundos; do seu sorriso cativante quando me encontrou ocasionalmente pela primeira vez; do beijo que não te dei na Nobel; do abraço da primeira despedida após o primeiro encontro; dos filmes que não assisti por que você me roubou a atenção; do vinho que você rejeitou no dia em que peguei firme na sua mão, levando o primeiro choque de senti-la mais próxima; do tremor de nós dois após o primeiro beijo; da incerteza após o primeiro beijo; da certeza após o segundo; da longa despedida; do reencontro e da insegurança do passeio no campus; das idéias caiofernandianas; dos papos sobre livros; dos ataques súbitos de vontade de te matar de carinhos; do seu cabelo longo e liso atrapalhando meus lábios a tocarem teu pescoço; de teu cheiro sempre tão suave; de sua pele tão alva e delicada; de sua maneira racionalmente pé-no-chão de me puxar quando estou alto demais; de sua inteligência que rendeu boas horas de conversa na internet; da taquicardia causada por ti mesmo estando longe; de seu pessimismo completando o meu; de sua alegria completando a minha; de sua dor se mesclando a minha; de seu espanto ao ver da janela da minha casa uma chuva de granizo; da praça em que nos encontrávamos com o coração pulsando tão forte que sentíamos um o do outro; de você querendo ir embora por causa do horário e eu sempre querendo que você ficasse mais;
...de seu corpo inteiro envolto em meus braços; de sua cintura aguçando minha vontade de te morder; de seus suspiros em meio a beijos mais longos; de seu nervosismo fingido quando começo a te atormentar as idéias; das músicas que muitas vezes foram o único ruído; de seu jeito singular de não dizer o que sente; de nossas desilusões compartilhadas desde o principio; de nossas vontades impossíveis compartilhadas desde o principio; de você reprimindo meu êxtase quando me deixava levar pelo desejo; de nossos primeiros toques; de todos os demais toques; de seu nariz que você nunca deixou eu pôr o dedo dentro; de seu pé pequenino; de nosso quarto quando estivermos velhos; de suas esnobações e gracejos quando lanço alguma cantada de pedreiro; de você vindo sorrindo me abraçar na rodoviária; de suas expressões enquanto dorme; de sua cara amassada tão bonita após uma noite de sono que perdurou até pouco mais de onze horas; de sua mania de roer a coberta; de sua braveza por sentir cheiro de cigarro em mim logo cedo; de suas pernas e de suas coxas - tão dignas de um natal farto - sobre mim; de sua negação aos meus beijos cheios de mau hálito matinal; de seu copo de café transbordando; do seu medo de planejar coisas; de seus segredos tão claros; de nossa saudade; de nossa sede;
...de seus olhos tão profundos; de bons silêncios; de bons abraços; de quando você disse “eu te amo”; de quando eu disse “eu te amo”; de quando novamente nos encontraremos pela primeira vez ... num ciclo infinito onde o velho é sempre novo e o que ainda não veio se torna nostálgico...

Sua voz some...
o quarto permanece vazio e eu ainda estou aqui, estático, sem ar, ofegante e atordoado e vivo.
Quem dera fosse possível morrer afogado num mar de lembranças tuas...
quem dera fosse possível terminar com “nós dois” e um ponto final...

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Incoerências Noctâmbulas

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"A noite enorme
Tudo dorme

Menos teu nome
."

Essa noite sonho contigo sem dormir.

É uma noite bela. Levemente fria com um céu estrelado e negro azulado como se fosse uma única e sublime nuvem cristalizando e prendendo todas as minhas vontades brilhantes e inalcançáveis. Noite comum de um sábado onde todos são noctívagos procurando por algo que nem sabem o quê.
Eu não sei o quê busco e nem me importa saber.

Em mim há apenas o arder solitário e ígneo que desperta quando estou a sonhar acordado durante a noite... e nessa noite que escrevo,que já não é mais essa, sonho contigo em vestes de fogo vindo abraçar-me, queimando meu espírito com sua respiração forçada enquanto permaneço a tentar com todos os esforços manter meus olhos abertos para esse mundo de futilidades que habita meu redor; meu redor que se resume numa massa grande e uniforme de vermes inquietos que espreitam por uma oportunidade de roerem meus ossos.
Ah, queria eu ser mais um desses que alimentam-se de si mesmos! Queria eu não sentir essas coisas que assombram e fazem de mim uma espécie quase que impossível de criatura abstrata consciente e exacerbadamente apaixonada por... vida? Por morte? Por dor?... Não sei. Eu não queria sonhar; mas sonho.

Sua chama protege todo o campo a minha volta e me mantêm livre daqueles que não têm alma. Sua presença em minha solidão se faz como um refúgio. Sim um refúgio, pois é isso que é necessário quando não resta mais nada além do sonho desperto; mas o lugar onde me resguardo é o mesmo lugar onde me deterioro; culpa talvez de suas vestes chamejantes que me queimam, me ardem, consomem e fazem de mim pó; um punhado de cinzas esparsas pelo vento vazio de uma noite onde não há você... há apenas o devanear-te. Não aventurar-te... não viver-te... devanear-te em mim apenas.

O manto que cobre o resquício de razão presente dentro da madrugada é grande demais e não permite entrada de luz alguma. Esse manto deveria aquecer Nefelins mas está a encobrir uma estúpida razão anã. Melhor assim, penso eu, pois é desse modo que sonho contigo sem dormir, e sonho sem sono inevitavelmente é obscuro e misterioso... a verdade está sentada no meio enquanto estou andando em círculos. Quem disse que quero parar de andar em voltas? Quem precisa de alguma luz quando há fogo exterior para nos iluminar, salvar e destruir?... Quem precisa do universo quando há um olhar cósmico a sondar os devaneios vertiginosos de uma mente e um coração em caos?
Sonhando contigo sem dormir as palavras já começam a perder o nexo. Já não sei mais o que escrevo nem sei distinguir o que penso do que deixo transbordar nessas linhas irracionais... só sei, porque sinto vivamente o ardor, que você me queima com suas vestes de fogo. O fogo... o fogo... é oriundo da minha maldição de ser consciente de nossas quedas em pânico, em duvidas, em silêncios mais ruidosos que as mais agonizas almas do purgatório ...
Sonhando contigo sem dormir me desfaço em milhões de pedaços, me desintegro e sem perceber desmaio com sede enquanto me concedes fogo. E é assim, comigo em migalhas, que o fogo de suas vestes transforma-se num oásis a encharcar meus pensamentos. A calmaria de nefelibata se apossa de meu corpo que já não sinto mais... alto demais o vento gelado não permite que eu durma para sonhar contigo. O frio congela a água que teu oásis usou para me curar... O gelo arde mais que o fogo de outrora. Os lampejos de seu corpo são fiapos agudos congelados apunhalando meu coração.
Sinto dor e não sei mais onde. Já não sonho mais contigo sem dormir; já prevalece apenas o frio da incerteza; já não há mais suas vestes flamejantes...
Sem dormir e sem sonhar vejo a sua humanidade congelando meu coração.

Meu coração é um sol sem vida e congelado. Não será mais quando novamente você invadir meus sonhos e me aquecer com suas roupas ígneas.

De volta, olho com olhar desconfiado o mundo ao meu redor, sem proteção, sem fachada e infestado por vermes; de volta, vejo o sol nascendo para mais um domingo sem sentido e sem vida. As pessoas voltam para a casa. Meu rosto pulsa por causa dos cigarros e do café que usei intensamente enquanto sonhava contigo. A razão se despe...
E, sem sonhar, me emaranho em meio à ausência e o nada.
Parece que será para sempre assim.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

A Falta...

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Não quero mais olhar tua imagem na foto em minha parede. Não quero mais pensar nos dias tão perfeitos que já não são mais; por enquanto. Parece que quando a inocência se esvai junto aos nossos sonhos, resta apenas um enorme pesar.

Teu corpo tentei em vão prender para sempre em meus braços e agora só há teu cheiro impregnado em mim; teus olhos fitei enquanto você dormia e agora só há a perdição de não poder tê-los mais, não poder amar você mais, não ser capaz de acompanha-la carnalmente talvez por dedicar de modo exagerado meu espírito a você...

Os lábios que beijei envenenaram meus desejos inúteis e impossíveis e a voz doce que ouvi dizer me amar ecoa como grito desesperado dentro do coração da minha alma, ecoa junto a tantas outras vozes incompreensíveis, tão incompreensíveis quanto o amor. Tudo isso aconteceu e acontece. O tempo todo... por quanto tempo?

Não quero mais a paz de fracassado que não sabe fazer nada além de viver na subjetividade idiota de sonhos mortos desde o primeiro despertar. Poderia eu dizer quem sou se não fosse a subjetividade? Seria eu feito dessa mesma matéria opaca da qual são feitos os sonhos?...
Não quero mais... Não quero mais... E é de tanto não querer que acabo querendo e crendo e buscando e amando mais... E é de tanto não querer sentir que acabo sentindo ardentemente, sofrendo , perecendo da mais agonioza amargura... Consequentemente acabo degustando da mais prazerosa alegria e da feliz certeza de que há algo que eu não queira e não querendo quero mais.

Quero sempre não querer para assim aprender a querer mais e mais.
Seja o que for.
Seja o que falta ou o que tenho.
Quero não te querer e por isso te quero mais que tudo.
Quero o sonho mesmo sabendo o quão doloroso pode ser o despertar.
Quero o mais amargo veneno para aprender a apreciar o mais doce dos vinhos.
Quero a penumbra da noite para aprender a admirar também a luz do dia.
Quero a sua falta para que assim a presença se faça mais intensa que qualquer outra.
Quero não querer teu amor... assim, sentirei sem querer e amarei com verdadeira inocência...
Assim, voltarei a pureza de tempos remotos.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Succubus - Incubus

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Durante a noite todas as coisas dormem. Inclusive o silêncio e o medo. Menos os desejos.
Os desejos permanecem acordados e ativos como morcegos farfalhantes nas árvores de uma praça vazia.

A noite tem cheiro de vermelho e cor de luxúria.
O breu é a mata que oculta a peçonhenta e traiçoeira serpente que invade o quarto dos não devassos: invade as vestes de sono da lânguida virgem comportada que tenta dormir como anjo - anjos às vezes deixam de crer em culpa, e por isso caem, e por isso tornam-se livres - . Invade o suor do marido fiel que usa de todos os métodos para continuar a desejar a mesma esposa - esposa invisível na penumbra, e sem alma em seus gemidos de prazer simulado -.



A consciência se dissolve em meio a escuridão dos desejos e prevalece apenas o sentir: Mãos invisiveis percorrem os campos impenetraveis das cristãs; seios de santas são entregues aos beijos dos padres. Na boca de cada criatura moralista, na boca de cada mentiroso que jura perante Deus ou homem pureza e fidelidade eterna ou não, fica o sabor das mais vulgares orgias. Prevalece o sabor dos corpos. Corpos iguais a tantos outros corpos que ardem durante o dia inteiro e queimam com chama intensa para viver durante à noite.

O ar noturno é afogante e mata. Mata quem não sabe nadar através dele, mas todos sabem mesmo sem saber. Salva quem sabe que a impureza é a coisa mais pura que há de existir, mas todos sabem mesmo sem saber.
O som noturno é som de cio. Som de caminho devasso, imoral, irracional e pecaminoso. Caminho sagrado ao inferno lugar de todos os santos. Caminho profano onde as almas são emprestadas à noite em troca de êxtase e gozo, e devolvidas durante o dia, para continuarem mantendo a ridícula fachada de nossa aparência moralmente distorcida.

Succubus e Incubus voltam ao inferno junto ao nascer do sol.
A volúpia se esvai e é novamente reprimida. Resta a satisfação de saber que a noite foi natural, devassa como é a vida, repleta de prazer e... O padre reza, a virgem cala, a freira jura novamente castidade - sem nunca ter sido casta um dia -...
Eles voltarão na noite seguinte.
Enquanto isso, os corpos arderão com febre intensa durante todo o dia.

Algumas coisas só podem ser vistas no escuro.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Lorelei

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- Olhos gatunos de lua cheia
Corpo exalando volúpia
Lábios como a morte – traiçoeiros
Braços de grilhões
e voz muda -.

A calmaria findou no momento
Em que as ondas cresceram na praia.
Subitamente, quando tudo era frio
Tão fácil, sem cor, monótono
Ela surgiu para mudar, colorir, enganar.

- Meus olhos aos dela flagraram;
Foi impossível escapar.
Leve sorriso em seus lábios
Envolveu meu espírito num abraço
Em silêncio começou a cantar -.

Maiores e maiores eram as ondas
E meus cinco sentidos se mesclaram
A canção inaudível me cegou...
Não desejei nada além de segui-la
Ao fundo... ao fundo de meus pecados.

- Meu corpo o dela sentiu;
E o êxtase beirou a loucura.
Sorrindo e cantando –muda- fugiu
Bela e encantadora mulher infantil
Amaldiçoada seja tamanha ternura -.

Não precisei mais respirar:
O amor que nutri foi maior que a vida.
Pude um instante tais lábios beijar
Já fundo demais... já tarde demais
Deixando-me e levando o mundo
Ela partiu...

- Olhos gatunos de lua cheia
Corpo exalando volúpia
Lábios como a morte – traiçoeiros
Braços de grilhões
e voz muda -.

Morrendo...
Afogado em teus feitiços
Entrego minh’alma
Amaldiçoada pelo amor
Ao vazio abissal do oceano
Em busca de paz...

Morrendo...
Vejo ainda teu sorriso
Sumindo... sumindo... sumindo...
Doce miragem...
Doce ilusão mortal...
Teu canto não me afeta mais.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Versos ao vento

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Sim, meu anjo
Eu deixaria a frialdade dos pensamentos;
Abriria mão de toda ambição maldita;
Não me importaria com o porvir...
Se houvesse amor por mim – em você.


Eu não valorizaria os frutos
Que tenho semeado desde a gênese;
Abandonaria qualquer sonho belo ou imundo
Apenas para viver a realidade em ti...
Se houvesse amor por mim – em você.

Eu não seria vagaroso e sombrio;
Não veria nos dias apenas o nada;
Não viveria mais nessa escuridão
Estaria a salvo iluminado por sua luz alva...
Se houvesse amor por mim – em você.

Eu cuidaria de ti mesmo ausente;
Acalentaria-te com toda a força do
Meu amor;
Mostraria que sonhar sabendo que é sonho
Não é deixar de sonhar...
Se houvesse amor por mim – em você.

Eu saberia que é tudo vão;
Deixaria de pensar que é possível
Compreender os mistérios
Desse modo que tu me amas...
Sem haver amor por mim – em você.

Por definhar sem saber o que sentes
Afirmo sem poder afirmar.
E assim, fico indiferente.
Por nós, sou capaz de sangrar...
Sim - há amor por você e por mim – em mim.

Sim, meu anjo
Permaneça sempre em silêncio
Ele é quem nos embriaga.
Pouco importa se embriagues mata...
Você não precisa ter amor – por mim.

Ah... Eu renunciaria a sobriedade
Duma vida inteira de vaidade
Por segundos ébrios ao teu lado.
Sim... Renunciaria as despedidas...
Renunciaria a saudade...

Renunciaria até mesmo a vida
Para morrer sem um pranto - em teus braços...
Se eu pudesse sondar teu coração
Se eu pudesse sondar tua alma
Se houvesse amor por mim – em você.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Solilóquio

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Quero alimentar um sonho mas o sonho
Não me alimenta
Quero me embriagar com vinho mas o vinho
Não me sustenta

Quero viver na eternidade mas eternidade
Não cabe na vida
Quero a beleza da arte mas prevalece
A natureza fria.

Tenho uma mente fértil que me leva
A inimagináveis lugares
Tenho uma vida mediocre que me desilude
E causa dores inefáveis

Tenho o básico para a existência:
Amor,saúde, mentiras
Não tenho o básico para sonhar
Mas insisto...insisto...
Não há saída.

Quero amar plenamente...
Não há plenitude no amar.
Quero exilar-me sozinho...
Sozinho não há onde ficar.
Quero conhecer calmaritá, passárgada, o céu...
Me afundo sem querer no inferno
Como judeu num gueto isolado e cruel.

Não tenho felicidade e por isso
Sou feliz
Não tenho vontade de viver mas vivo
Maldito instinto que eu nunca quis.
Não tenho como viver sonhos
Mas sonhos vivem em minha vida.
Quero apenas um plano perfeito
Mas a perfeição só causa feridas.

Não posso embriagar-me e sonhar
Pois lícor não alimenta...
Desse modo não posso amar
Pois amor por si mesmo
Não se sustenta.
Não posso enxergar o real, o real
É desesperador.
Lutar ciente do fracasso só aumenta
O fardo da dor.

Resta sonhar sem sonhar com nada
(Desgraçada inocência de criança)
Resta a dúvida se isso irá acabar
(Talvez um dia finde a dor que é tanta)
Se não há como sustentar o sonho
(Se a vida sem desejos não é nada)
Resta a esperança de que meu crânio
(Roido por vermes: sem carne ou alma)
Sirva para,
Do vinho que nunca tive,
Ser taça.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

O ventilador de livros

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{Um sonho... que não era bem um sonho.}

I


Pacha era jovem, apesar de soturno e detestavelmente insípido.
Adorava livros, principalmente os de filosofia, com os quais passava horas a fio sentado na frente de casa, lendo e filosofando. Sempre após as leituras, encontrava dentro de si respostas para tudo: acreditava que o amor era um estado inferior de espírito, mesmo sem nunca ter amado; acreditava que a morte era a única coisa que existia de agradável na vida e, paradoxalmente, a única coisa que não deveríamos buscar, pois ela nos buscaria cedo ou tarde. Resumindo, questões existenciais e sentimentais não eram problemas para ele, que se punha sempre acima do certo e errado, mesmo quando acabava caindo no senso-comum, o que não era raro.

"Pacha, o café está na mesa." – exclamou Dna. Opina, mãe.

Uma das poucas atividades que faziam ele largar a solidão dos livros era o café... muito café, seguido de cigarro de folhas de morango. Em segredo, o rapaz acreditava que a fumaça extraída de tais folhas servia para libertar-lhe a "sombra" e guiar sua alma à liberdade.
Largou o livro ali mesmo, na frente da casa, e entrou para tomar seu café.
A casa era humilde, digna casinha de interior litorâneo: um quintal repleto de mudas de árvores tropicais, e no centro a construção aconchegante com rede na espaçosa varanda e algumas cadeiras de balanço em volta.

Chegando na cozinha, Dna. Opina, a mãe, não estava lá. Havia apenas o café ainda fumegante no bule e um pote com açúcar sobre a mesa. Ele não deu por falta e nem se importou. Adorava ficar só e a degustação de seu café poderia ser mais bem apreciada sem o silêncio ruidoso da mãe (sim, ela costumava fitar-lhe em silêncio, o que era mais estrondoso que uma horda de mães matracando).
Prosseguiu tranqüilamente: serviu-se, degustou, repetiu, repetiu, repetiu e logo depois foi ao fundo da casa apanhar folhas secas de morango. Havia vários morangueiros no quintal e não foi difícil encontrar quantidade de folha suficiente para seu fumo vespertino. Enrolou um cigarro e foi à frente da casa novamente, retomar sua leitura.
Alguma coisa aconteceu logo após a primeira tragada. O livro estava diferente, a frente da casa estava diferente. Tentando ignorar, folheando, viu que todas as páginas estavam com as letras se modificando e circulando como um tufão. Soltou o livro num impulso, assustado, e sentiu, junto ao susto, uma acalentadora sensação: uma espécie de brisa que nunca sentira antes.

Sentiu-se confuso; não sabia se isso estava sendo alucinação, que ele nunca teve antes, do fumo de morango ou se estava enlouquecendo.
O que acontecia nos fundos de sua casa, ele não conseguia ver, estava atordoado e parcialmente imobilizado. As árvores que estavam em frente cresciam, na calçada, desfolhavam e morriam subitamente. A casa, sem ser vista, desabava e era reconstruída constantemente. O clima passava do mais intenso calor ao mais ardiloso frio. Ele sentia tudo, percebendo toda incoerência, porém tentava não se afetar.
Num esforço, Pacha olhou para trás, viu algum bicho que nunca tinha visto antes, saindo dentre os morangueiros no fundo do quintal; a casa estava em ruínas e o livro aberto em sua mão, escapou flutuando no ar como balão de gás hélio, girando cada vez mais rápido. Há um estrondo. O barulho de tão intenso e atormentador fez com que ele caísse desfalecido no chão. Dormiu... mas não sonhou.

Logo, os olhos do rapaz começaram a abrir...
O "bicho" pequeno que perambulava pela plantação de morangos se aproximou de Pacha, que estava estirado no chão feito morto, dormindo com frágil respiração. O jovem sentiu-se envelhecido, como se houvesse algo novo correndo em suas veias. Com a vista ainda meio embaçada, notou ao seu lado um pequeno feto, com pés pequenos nos quais se equilibrava sem dificuldade, mesmo sem ter dedos formados. O corpo disforme estava coberto de sangue e na barriga gorda o longo cordão umbilical, extenso como aquelas mangueiras de lavar quintal.
Olhando mais atentamente, Pacha viu que o cordão estava inserido junto à veia de seu braço. Não se espantou com isso. Apenas arrancou-o. Cada vez mais incerto de si, tentou colocar a mente no devido lugar.
Estaria ele sonhando? Estaria morto? Não encontrava respostas. Lembrou-se que lia. Mas não sabia dizer quanto tempo estivera dormindo.
Com o corpo dolorido, levantou-se, sem deixar de ficar atento ao feto sombrio, que estava apenas segurando o cordão que não parava de jorrar sangue no chão, olhando Pacha com expressão... expressão de feto.

A casa estava em ruínas.
Após levantar, ele andou sobre os escombros; procurando algo, sem saber se havia o que procurar. Pisou nos tijolos e pedras e tudo se desfez, como fossem cinzas apenas. Aos lados dos escombros, havia uma vegetação fria: árvores sem folhas, mortas, e morangueiros repletos de folhas secas.
Pacha ria. Achava irônico tudo aquilo, mas sua graça se perdeu quando viu entre os destroços da casa, exatamente onde ficava seu quarto, quanto tudo ainda era inteiro, a prateleira onde ele guardava seus livros. Estava inteira, e ele , ao ver livros, lembrou do estouro forte que o levou à inconsciência. A situação ficou mais confusa quando ele se aproximou e viu Dna. Opina, a mãe, estirada no chão, dentro de um círculo único onde havia vegetação viva.
Fedia.
Dna. Opina estava se decompondo e já não tinha muita carne. O contraste entre vegetação viva e a carne podre da mãe parecia uma pintura bizarra. Aproximando, encontrou vida nos cabelos enormes da mãe, que crescia lentamente, mas visivelmente, e em algo estranho na parte que outrora havia sido uma barriga: uma bolsa com um feto dentro. Não um feto como o que estava parado, estático na frente da casa, mas um feto limpo e já com feições de bebê, com o cordão umbilical ligado, como raiz de árvore, ao solo verde do círculo.
Sem saber o que aconteceu, Pacha sentiu pela primeira vez desespero. Saiu do quintal e desatinou a correr pela rua escura e vazia. Quando deu por si, notou que não estava saindo do lugar. Todas as casas da vizinhança se pareciam com a casa dele. Todos os lados pareciam replicas idênticas de um lado único. E na frente de todas as casas havia um Pacha... como num espelho.

Não havia o que fazer.
Sentou-se então, cabisbaixo na frente da casa em ruínas e permaneceu lá até sentir o sangue do feto sendo esguichado sobre sua cabeça. O sangue, de alguma maneira incompreensível, estava afogando-o.
Sentiu necessidade de sair dali, de se proteger de alguma maneira... como?
Já estava sem agüentar a falta de ar.

Novamente por impulso, correu e caiu fraco, ao lado do corpo de Dna. Opina. Descobriu que ali dentro do círculo, o feto coberto de sangue tornava-se invisível, assim como o corpo da mãe.
Ficava apenas a imagem do outro feto, limpo, no centro do círculo e a estante sempre igual e contrastante, repleta de livros.
Decidiu mexer nos livros, pensando que "se eles fizeram tudo isso, eles poderão normalizar as coisas, quem sabe". Não lembrava qual livro estava lendo antes de tudo, por isso escolheu um qualquer, cujo titulo estava num idioma que ele não conhecia.
Folheou... folheou... folheou... e mais uma vez viu letras girando. Sentiu enjôo, uma ânsia muito forte. Não agüentando mais, vomitou sangue... e enquanto vomitava, o cordão do feto, esguichando novamente, fazia com que o sangue voltasse à sua boca.

Estava fora do círculo. Estava na frente da casa. O livro girando no ar enquanto ele vomitava incessantemente...
Com todas as forças, Pacha tentou tapar a boca. Conseguiu, porém sentiu-se fraco. Viu letras vindo em sua direção como fossem ventos. O vento que o livro emanava eram as palavras. Indecifráveis devido à velocidade que eram lançadas.
Subitamente, um estouro mais forte que o primeiro.
O corpo do rapaz pareceu despedaçar-se com a explosão... antes de desfalecer, ele viu pela última vez o feto coberto de sangue.

II
Ondas...
Pacha escutou barulho de ondas.
Ao despertar, sentou-se e vislumbrou o imenso oceano escarlate. Reconheceu que estava na praia próxima da casa e logo após a recordação, num piscar de olhos, viu o mar tornar-se normal novamente. Viu o sol aparecer e sentiu um calor diferente, que o incomodava.

Levantou com um forte desejo de voltar a casa... mas qual era a casa? Ele não acreditava morar ali. Não acreditava morar em lugar algum. O que estava fazendo ali?...
Andou pelas areias. Sem rumo. Até que encontrou, sem querer, sua noiva, Sensata e sua amiga Dúbia.
Sensata lia sentada na areia, enquanto Dúbia tomava sol, ambas de frente para um ventilador... de livros.
Não se sabe o motivo pelo qual Pacha achou natural aquele ventilador estranho, no meio da praia. Também não se sabe de onde ele tirou uma noiva. Nem ele sabia tê-la, mas sentiu algo forte dentro de si mesmo quando a viu e soube quem era... mesmo sem conhecê-la antes. O mesmo se diz em relação à amiga: ele não sabia dela... até encontrá-la e reconhecê-la sem ter conhecido antes.

A filosofia, a insipidez, a solidão, o barulho dos estouros.
Pacha queria se desfazer de tudo isso. Não queria lembrar. Queria apenas descansar um pouco. Queria ler algo consolador e, pensando nisso, sentou-se ao lado de Sensatez, que lhe recebeu com um caloroso beijo saudoso. Ele então pegou o livro que estava na areia.

Mal-estar. Outra vez uma sensação ruim se apossou do rapaz confuso: o ventilador não estava ventilando o suficiente; ao invés de refrigerar, ele estava causando náuseas, e sentimentos estranhos. Não pensou duas vezes: precisava colocar outro livro nele... mas qual?
Pediu o de Sensatez. Ela recusou-se alegando estar profundamente necessitada daquela leitura. Olhou então para Dúbia, mas ela não estava lendo; estava apenas tentando conversar.
Só restou o seu. E ele não buscou alternativas, apenas concluiu que se tivesse pensando antes, nem teria se dado ao trabalho de pedir o de Sensatez. Colocou então o livro, sem necessitar nenhuma técnica especial. Apenas aproximou-se dele e encostou. O problema foi o que houve logo em seguida...
O ventilador explodiu, como se estivesse havido algum curto-circuito, mas não havia fio algum por ali... Os livros subiram alto, muitos, e depois caíram como chuva. Nenhum acertou Pacha, Sensatez, ou Dúbia. Quem acabou sendo atingido foi o interior de Pacha que buscava, após tantos tormentos, instantes de paz.

Livros não paravam de cair, até que um deles atingiu Lay, que estava num quiosque e não havia sido notado pelos três outros presentes. Lay caiu no chão com uma ferida profunda na cabeça; perdeu muito sangue.
Pacha , desorientado, sabia que não havia socorro por ali. Onde ele estava mesmo? Sentiu-se perdido. Desesperançoso. Pôde apenas fechar os olhos do amigo; ele sabia que aquele era seu amigo. De onde? Ele teve amigos? Não tinha nenhuma resposta, mas sentiu que sim. Tudo ali parecia ser movido por sensações; nenhuma lógica. Nenhuma razão.

Frio, deixou o amigo morto onde estava. Sentou-se novamente perto de Sensatez e lá permaneceu, apesar da sensação caótica causada pela ausência do ventilador de livros.
Pouco mais tarde, após momentos de silêncio (rompido, às vezes, por Dúbia e sua ânsia de conversa), surge um homem chamando por Pacha. Ele reconheceu esse homem: era seu pai. Mas ele não vivia com sua mãe? Lembrou-se, então, que sua mãe havia se transformado num cadáver pútrido guardião de um feto.

O pai, Dr. N.A., foi chamar Pacha para lembrá-lo que era necessário viajar. Voltar aos estudos.
Não podiam esperar mais, ele tinha que partir naquele exato momento. Mas... como? De que maneira poderia ele ir embora, se o ventilador de livros estava quebrado? Definitivamente, não conseguiu entender o que o ventilador tinha a ver com sua viagem, mas sabia que tinha algo crucialmente importante, não podia viajar sem ele estar funcionando.
Dr. N.A. tinha uma certa aptidão com eletrônica, mas apesar de todo o esforço, não conseguiu consertar; aquilo não era algo consertavel e muito menos era eletrônico. Exaustos , ambos decidiram desistir e voltar pra casa. O pai foi na frente, Pacha foi atrás junto de Sensatez e Dúbia.
Enquanto prosseguiam no caminho, nada aconteceu de diferente. Continuaram andando, até chegarem na frente da casa que era a mesma. Estava reconstruída, porém inacabada, sem a varanda e com pouco acabamento. Pacha não achou aquilo estranho e entrou.

Sentiu falta do pai. Ele não havia chegado. Procurou por Sensatez e Dúbia e ambas haviam sumido. Pacha estava só, ou pensou, por um momento, estar só.
Decidiu ir até o quarto onde costumava dormir e quando chegou lá, encontrou Dúbia deitada, como enferma. Ela percebeu a presença, chamou-lhe e disse que "você chegou no momento exato; se não houvesse alguém aqui, eu estaria morta". Não conseguiu compreender o que aquelas palavras queriam dizer, mas como tudo estava incompreensível naquele lugar, ele não deu grande ênfase a isso. Olhou pela janela e, para sua surpresa, viu Sensatez encostada num cercado de madeira, conversando com uma garota... Ímpia! O nome surgiu em sua mente. Sentiu que também conheceu em algum lugar aquela pessoa, porém a sensação não foi nem um pouco parecida com a de quando encontrou as outras duas.

A ânsia voltou. O calor do lugar estava atormentando. Precisava vomitar. Precisava de ajuda. Procurou por Dúbia, mas ela não estava mais na cama. Não houve opção; vomitou ali mesmo, formando uma enorme poça de sangue no centro do quarto. Em seguida sentiu muita fome, afinal, fazia tempo que não se alimentava e precisava de alguma maneira recuperar as energias perdidas por causa do longo vômito.
Apoiando-se nas paredes, dirigiu-se até a cozinha onde encontrou o mais absoluto vazio, tanto material quanto espiritual. O ar abafado não permitiu que permanecesse lá; voltou e no caminho, precisamente no corredor entre a sala e o quarto, encontrou mais um conhecido, era Infortúnio, que estava há tempos com o caderno onde Pacha escrevia versos (havia pedido emprestado para adaptar alguns em letras de músicas para a banda que ele tinha). Pacha sentiu suas forças se recomporem um pouco ao ver que o caderno estava nas mãos de Infortúnio. Porém este, só cumprimentou, jogou o caderno embaixo da prateleira que ficava no corredor e entrou em direção à cozinha. Logo atrás dele começaram a surgir muitas pessoas. Todas iguais: mesma veste, mesma fisionomia, mesmos gestos. Uma massa de mais ou menos trinta pessoas idênticas em tudo.

III

Não era possível continuar dentro da casa. O ar era irrespirável e a aglomeração não permitia muitos passos; Pacha não parecia ser notado pelas pessoas. Foi notado apenas por Dúbia, que apareceu enrolada numa toalha (justificou-se alegando que tinha ido tomar banho, pois estava se sentindo mal. Esse foi o motivo de ter desaparecido subitamente da cama) carregando um prato com alguns pedaços de carne. A moça ajudou-lhe a sair de dentro da casa e quando chegaram ao lado de fora, viram Sensatez, Ímpia e um homem de terno, correndo atrás do feto. Era aquele mesmo feto que quase o afogou com sangue, lembrou-se. Os três corriam incessantemente atrás do feto que, de modo estranho, conseguia ser mais ágil e astuto que todos. Aquela imagem não incomodou Pacha e Dúbia, que estavam na frente da casa, petiscando o prato de carnes e olhando com uma certa alegria a cena que ,apesar de grotesca, parecia divertir o grupo que participava.
Permaneceram assim, até o momento em que Ímpia percebeu estar sendo observada e dirigiu-se até eles:

"Pacha! Que bom ver você após tanto tempo. Fico muito feliz em ver que você está bem, apesar dessa sua tão freqüente expressão de cansaço. Creio que você está se perguntando o que diabos estou fazendo aqui e nem precisarei dizer..."

Sensatez interrompeu:

"Olha na TV. Você conhece uma cantora e eu fico extremamente feliz de saber que meu noivo conhece uma cantora tecnocrata. Ela veio gravar o cd aqui, pois é onde há maior número de adoradores do Naja".

Pacha lembrou do vínculo que teve com os tecnocratas. Teve realmente?... sentiu ter tido. Odiou a idéia absurda da existência do Naja. Sabia que Sensatez estava sendo irônica em suas palavras e por isso nem se deu ao trabalho de prosseguir com o assunto. Olhou pela janela e viu uma propaganda do cd de Ímpia, na tv.
A música era péssima. Misturada ao calor, à fraqueza, à falta de sentido daquilo tudo, gerava uma sensação de desespero e Pacha não sabia o que fazer.
O homem de terno continuava seguindo o feto, que agora estava com seu cordão umbilical servindo de regador às plantas. Enquanto fugia, o feto ia esguichando sangue por toda a parte. O caderno de Pacha estava molhado com sangue... pela janela ele viu que a poça de vômito havia tomado metade da casa. Tudo estava inundado pelo sangue e o caderno boiava.

Precisava do caderno, tinha certeza. Ele tinha que fazer um outro ventilador de livros, não era possível continuar vivendo sem um, e sabia que o caderno serviria como peça crucial para a construção bizarra.
Dúbia não estava mais na frente da casa... estava dentro dela, apenas com as roupas intimas, nadando naquele rio de sangue. Por algum motivo, o liquido não esvaia pela porta. Parecia haver uma espécie de barreira invisível que bloqueava a passagem de dentro para fora.
Pacha pulou a janela. Sensatez ficou ao lado de fora, junto à Ímpia, olhando e rindo de algo que ele não sabia o que. Nadou, sem conseguir respirar e com dificuldades para trafegar em meio àquele aglomerado de gente (alguns aparentemente mortos boiando; a maioria apenas fazendo movimentos idênticos uns aos outros). Conseguiu apanhar o caderno... mas sentiu que não aguentaria o caminho de volta. Não havia ar... Não havia... Não...

Afogando-se no sangue, como última força antes de fechar os olhos, ele abriu o caderno... Não havia palavras. Apenas folhas vermelhas que começaram a girar, causando um tipo estranho de redemoinho.
Ele foi absorvido pela pressão que o caderno causou sobre o líquido e quando fechou os olhos, eles não fecharam, abriram. Parecia que estavam fechados antes do afogamento e só agora abriram realmente.

Caído no chão, Pacha viu um céu vermelho. Olhou ao lados e reconheceu onde estava; estava no mesmo lugar, porém, a casa estava em ruínas novamente. Estava tudo vazio outra vez, com apenas o feto parado ao seu lado, o cordão injetado em seu braço e , entre as ruínas, a prateleira próxima do corpo da Dna. Opina.
Sentiu vontade de chorar. Vontade de morrer. Vontade de acabar com toda essa loucura de uma vez! Com uma pedra, começou a bater no feto, sem desinjetá-lo de si próprio. Bateu muitas vezes com força, na cabeça, até que o crânio rachou e o vermelho deu lugar ao cinza da massa cerebral que impregnou todo o ambiente.
Cansado, sem mais o que fazer, foi olhar a mãe. Ele ainda estava com a pedra suja nas mãos; não pretendia soltá-la. Estava também com o feto ligado a si próprio, arrastando-o onde quer que fosse.

Dna. Opina continuava a mesma: fedendo, pútrida, com a bolsa de feto. Os livros na prateleira continuavam os mesmos. Em desespero, pegou todos e começou a rasgá-los, a lançá-los no chão. Um buraco começou a se abrir...
Muitos livros começaram a girar ali, no centro do único lugar onde havia vegetação viva. O ar estava se tornando melhor. O corpo de Dna. Opina estava retomando vitalidade. Pacha sentiu-se tragado e não se esforçou para não ser. Ia cair, mas antes de cair segurou o caderno que estava no chão. Abriu-o pela última vez e conseguiu ver as palavras... arremessou o caderno no ventilador que surgira no chão.

"Pacha, o café está na mesa!"

Foram as últimas palavras que ele escutou antes do estouro.
Após isso, Pacha teve a mente apagada. Não lembrava mais absolutamente nada. Não sabia nada. Houve apenas sensações e, a primeira sensação foi a de susto. Teve medo do barulho do próprio choro, nunca tinha escutado barulho nenhum antes.
Quanto mais gritava, mais assustado ficava e mais gritava. Até que sentiu algo confortador: mãos carinhosas lhe encobriram (ele não sabia que eram mãos), algo quente (o calor de uma pele) tocou-lhe. Parou então de chorar. Se acalmou. Não sentiu calor, nem frio, sentiu-se bem, apenas.

E continuou bem...
até o momento em que abriu os olhos.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

...

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Não... Eu não tenho mais medo das coisas que preciso.
Na verdade eu não preciso de nada.
Aquilo que me prende é exatamente o que me liberta, e aquilo que desmorona é exatamente o que constrói. Então não temo mais nada. Não preciso de mais nada. Não tenho mais nada a perder...
nem a ganhar.

Tudo passou, tudo morreu e só sobrou o vazio de sempre.
Não que eu não soubesse disso, afinal, desde o principio eu estava preparado para o fim.
Do mesmo modo que desde que nasci já estou preparado para o morrer... dormir... talvez sonhar, quem sabe. Não. Não. Sonhar não, pois sonhar pressupõe vida e só há vida àqueles que ainda carregam gotículas de esperança.
Eu não carrego mais. Em nada.

Em vão é o tentar ser feliz, quando no final há apenas o cansaço de ter gasto todas as forças em algo frágil e facilmente excluível.
Em vão é aceitar os abraços complacentes da alegria, quando sabemos que ela não passa de tristeza mascarada...
tristeza maldita com sua força inexorável.
Tristeza que marca, fere, atinge, corrói e exatamente por isso faz com que nos sintamos vivos.
Vivos em meio a mediocridade de amar o ardor frustrante da vida.
Não. Não. Não amo mais a tristeza. Nem a vida. Nem o ardor. Nem a ânsia. Nem o vazio.

Ódio de mim mesmo é o que resta.
Um ódio paradoxal, que se transmuta em lágrima e se torna gota de...
algo indefinível que me faz viver ainda.
Viver para chorar em brinde à vida.
Morrer em vida para chorar em brinde à morte de cada novo respirar.

O deus que havia em mim, morreu.
Ele era humano e não suportou as punhaladas invisíveis do tempo.
Esse tempo que já não existe.
Esse tempo que passou e apagou minha imagem da mente daqueles que me "amavam".
Esse tempo que passou e matou a esperança de que há esperança na vida.

A criança que havia em mim, morreu há tempos.
A velhice carrancuda de minha alma sente remorso por pensar que um dia foi criança.
Quando ela foi?
Talvez quando acreditou em algo...
Quando precisou de algo.
Hoje não precisa de nada.
Não quer nada.
Nem sequer existe, pois não tem mais objetivo para viver.

Só existe o ódio, a tristeza e sua materialização em forma de lágrimas...
porém, logo elas também acabarão.
Logo... muito logo, haverá apenas o cinza frio de uma alma pútrida e de um coração em farelos.
Acho que no cinza, no Vazio Absoluto e na "frialdade inorgânica da terra" poderei encontrar alegria e silêncio.

Silêncio... Psiu! Não faça barulhos! Bem sabemos que a vida é sombra que passa...
um idiota qualquer que sobe ao palco e encena uma peça cheia de barulho ensurdecedor e fúria atormentadora...
Barulho, fúria, tormento que não tem significado nenhum.
De fato, Macbeth tinha toda razão.
E ele saiu vitorioso ao morrer em batalha.
Ah, pobre daquele que acha que continuar a viver é alguma vantagem!
Vantagem... Vertigem... Vivacidade... Voragem... Vulnerabilidade... Vulgaridade...

Psiu! Não faça barulhos! Cale-se e aproveite o silêncio da vida, que não é mais vida e, exatamente por não-ser, é que deve ser valorizada como merece.

Quanto tempo é necessário para enxergarmos que isso tudo é uma ilusão estúpida?
Ah, sim. Claro! Viver é bom, beber amarguras é bom!...
Mas quem é que já morreu para ter a ousadia de afirmar que "viver é bom"?
Quem já experimentou do verdadeiro doce da vida (ou morte) para afirmar que "beber amarguras" é bom? Não. Definitivamente não.
Não preciso de nada.
Nem doce, nem amargo.
Foda-se essa peça ridícula que, para mim, já está terminada antes da metade do primeiro ato.
F-O-D-A -S-E, assim, soletrado mesmo para expressar o quão inútil ela tem se tornado para mim.

Não... Não tenho mais medo das coisas que preciso, ou melhor, não tenho mais medo das coisas que precisei.
O agora se tornou obsoleto demais, e não resta nada.
Nem sei qual o sentido de todas essas palavras...
Vida? sim... é a "Vida".
Ela ainda insiste em fazer barulho.
E aqui está ela ofendendo a si própria.
Quão fútil ela é!
Não sabe ficar calada.
Insiste em tirar o ruído animalesco que habita a caverna de uma alma morta.
Insiste em lançar palavras ao vento.
Insiste em buscar respostas, rasgando a carne e a mente para tentar libertar a alma.
O que atormenta é o que acalma.
O que me prende me liberta.
O que me dói me fortalece.
O que me mata, é o que mais me faz viver.

Morrer... dormir... sonhar? Não... não.
O sonho morreu junto à esperança.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Restos...

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Quando tudo tiver passado, ainda haverá algo em mim.
Recentemente estive com isso em mente e , assumo, não encontrei sentido nessa frase.
Tudo se torna passado de maneira tão abrupta e veloz que fico confuso ao olhar para trás e ver apenas a sombra disso que sou (?) hoje.
Dias sempre iguais, brisas sempre mesmas, sentimentos sempre tão certos e sempre tão duvidosos... será que quando tudo passar restará realmente algo em mim? Não sei. Não sei nem se o passado será passado um dia, tendo em vista que ele, as vezes, é mais presente que o fosco tempo de agora... agora que já não é mais.

Haverá algo em mim. Talvez de modo circular, haverá algo em mim do mesmo modo que há algo imutável e inominável aqui, bem fundo dentro de minha alma, preso no eterno agora.

Tudo que tenho agora é nada; um nada que está próximo a passar. Como então ele ainda permanecerá em mim? Como sombra qualquer, talvez.
Apenas algo indefinido que só se tornará visível através de alguma luz exterior. Luz essa que não sei de onde poderá nascer; nascerá junto com a manhã? Nascerá junto à aurora morta após o primeiro milésimo de existência? Ou será que simplesmente não nascerá? ... Dúvidas sem sentido, eu sei. São dúvidas que teriam menos sentido ainda se houvesse resposta a elas.
De pouco importa se algo me fará ver a extensão do nada ou se ele, o nada, ficará para sempre preso em algum canto escuro e sem janela de meu coração.

O vazio é sempre o mesmo, o agora é sempre o mesmo, o passado é sempre o mesmo e o futuro é um final sempre igual...

Em meio a tudo isso tenho vontade de fugir de meu caótico universo. E fujo. Escapo em falsos sonhos. Jogo lenha na imensa fogueira da esperança. Platonicamente me entrego à paz de sofrer em silêncio, de amar gritando que não há vazio àqueles que amam (sabendo que isso é mentira), me lanço em direção ao sol sabendo que irei morrer com a intensidade das chamas... e não lamento por isso. Isso é o que me resta. E é o melhor que houve em mim, será ainda o melhor que haverá em mim, e é o melhor que há em mim.
Não preciso de nada mais. Preciso apenas ter como amenizar a força do nada. Amenizo essa força com os restos de todos os meus sonhos e também com os sonhos restantes que estão por vir.

Quando tudo tiver passado me restará amor, e no amor me enganarei e me confundirei sem lamentar. E quando o amor não existir mais, restará resquícios de sonhos e uma grande sombra dum passado sublime. E quando o sonho passar não me restará nada... E é nesse nada que novamente haverá algo em mim...

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Ao inocente conformado

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Você nunca sente a dor
da incessante busca pela verdade
Não tem sonhos em meio ao desamor
Nem acha abismos de falsidade.

Tudo que é belo morrerá
Toda alegria chorará
Porém você não sente... Não nota.

Todo pensamento corromper-se-á
Toda alma pútrida um dia será
Pois tudo morre... Nada se transforma.

Em sua inocência você ignora
Todo o vazio que te aflige
Adorando a mentira você ora
Não sente no peito a esfinge.

Toda ilusão é real
Se desprezas a realidade
Todo vazio é mortal
a quem vive sem ansiedades.

--------------------------------

Os dias passam e passam...
Números riscados no calendário.
Você não compreende a repetição...
É sempre segunda do mês de março.

Você em sua inocência vive.
Em sua ilusão tem respostas
A morte nunca te atinge
e os dias são mares de glória.

Eu em meu vazio morro
Em minha mediocridade me perco
Minh’alma pede constante socorro
meu corpo treme em desespero.

Oh, ignorância! És felicidade e és relativa...
Se eu qual você ignorasse o nada e o vazio
Ainda haveria esperança em meu corpo frio
E ao invés de Morte, teria Vida!

sábado, 16 de maio de 2009

Em circulos

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Todos os lugares estão ocupados
nesse espetáculo ridículo chamado existência.
A única coisa que me mantém vivo
é a esperança de reviver o que passou...
Ouvir o doce som do silencio
Sentir o doce gosto dos lábios...
Beijos de outrora - recentes -
como se fossem o sopro divino da vida
acendendo a chama fraca e cansada
dos sentimentos soterrados pela desilusão.

Tudo que há em mim está fragmentado
e cada pedaço voa como areia ao vento
vento qual tufão, girando, girando,
girando e retornando ao local de origem
da dor e do cético sentimento de saber
que não há o que sentir realmente; friamente
busco enxergar com outros olhos...
Busco mergulhar em outros olhos...
Então encontro a unificação de meus fragmentos
que juntos tem forma de abismo aos moldes do coração
dentro das profundezas de seu olhar...

Novamente volto a cometer o erro,
e errando encontro novamente paz
em meio às ruínas de sonhos
feitos de sangue e dúvidas.
Todos os lugares estão ocupados...
E continuo a insistir em viver buscando refugio
desse show caótico e vão.
Esquecendo de tudo, ignorando tudo
e vivendo de amar sabendo que o amor não existe;
vivendo na sombra dos sonhos sabendo que é tudo mentira;
esperando pela luz radiante de sua presença,
de sua companhia em um mundo onde não há lugar
nem para mim, nem para você...

Preciso de você sem precisar.
Sonho com você em vão.
Preciso existir e para isso tenho que esquecer que existo.
E só esqueço quando você me lança em meu abismo...
Abismo falso em forma de coração...

Perco-me ao me encontrar em ti
Me encontro ao me perder entre sentimentos.
Não sei o que faz de mim assim...
Não sei o que escrevo ou penso...
Só sei que te amo...
Sem saber o que é Amar.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A Lira dos Cem Anos

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Tenho dúvidas... Tenho tantas dúvidas!
Pelo número de todos os fracassos que coleciono em minha alma, sou mais que uma pessoa jovem, de vinte e três anos; sou menos que uma pessoa jovem de vinte e três anos.
Coisas inomináveis se apossam de minha mente, sempre de maneira tão súbita, sempre de maneira tão abstrata, sempre fazendo com que tudo vire nada e aumentando a vontade inconsequente de abrir mão desse nada, que é tudo que tenho.
Minha "lira" que embeleza à vida está sem cordas, enferrujada e com vermes horrendos ao redor. Não só a minha, mas a lira do mundo está pútrida. E fede, essa lira. A música incomoda tanto quanto o fedor. São apenas ruídos misturados ao cheiro ruim atormentando todos os que conseguem vê-la, senti-la e ouvi-la.

Tenho dúvidas... Será que tudo isso é verdade? Mas o que é "verdade"? Se não há nada de absoluto então não há verdade alguma. Só resta a dúvida eterna e o cheiro desagradável e enlouquecedor do som da lira dos cem anos presentes em meus vinte e três.

Ah, que saudades de minha juventude! Podem rir de mim os que só enxergam o palpável. Aqueles que tiverem a capacidade de navegar nas profundezas de meus olhos, poderão notar como sou velho. Velho e cansado... Muito cansado. Cansado de que? De ouvir repetidas canções que sempre terminam; de tentar extrair ruído de paz duma lira podre. O cansaço do mundo é forte, e atormenta. "Sempre existe algo ausente, que atormenta". O que me falta é vida, ânimo, beleza, verdade... Me falta o mundo e sua cegueira coletiva. Se todos enxergassem o quão inútil e ridiculo é esse "espetaculo" vivandis, provavelmente já haveriam desistido de batalhar por um futuro que não existe. É tudo o agora, e o agora é nada. O Agora é a dúvida eternamente sem resposta, é a velhice de quem não sente mais prazer em degustar o sabor de alegrias e tristezas.
Ah, que saudade de minha juventude! Quando poucos eram os destroços dentro de mim; quando tudo era construções, apenas construções de sonhos desmoronáveis.

Hoje, agora, o tempo real me faz acreditar que sonhos de areia não conseguem permanecer em nossas mãos quando o vento insiste em soprar, não para refrescar, mas para desmoronar, destruir, acabar. Sim! Acabar! Queimar a lira maldita e viver em um universo mudo. Nada é mais doce que a melodiosa canção do silêncio. O vento não queima o instrumento que embala a vida. Isso é preciso ser feito por mim mesmo. Como?... Meu corpo arde ao pensar; minha mente estremece; mas minha alma permanece fria, congelante a tal ponto que toca o coração... O coração derrete o gelo com suas lembranças, suas melódias que há tanto tempo não são mais escutadas. A alma quer beijar a morte, mas o cansado coração insiste em tirar alguma nota harmoniosa da lira tão velha. Ele, o coração, falha. O frio é mais forte e o fedor da música também.

Maldita velhice de minha alma! Que ela morra de uma vez, junto a tudo aquilo que faz com que a lira dos cem anos continue a tocar sua música moribunda! Talvez assim, com a alma morta, ainda haja esperança fria ao meu coração vazio. Talvez assim eu viva por viver, sem buscar respostas nem dúvidas...
De que adianta tudo isso??? De que importa minha idade? De que importa a lira, as notas, o peito, a alma? Está tudo apodrecendo. Breve haverá um nada ainda maior que o de agora. Breve haverá o pó... E como ninguém aguenta escutar ruídos de uma lira sem vida, ninguém terá vontade de levar flores para animar simbolicamente o túmulo que não terei. Ninguém lembrará dessas palavras torpes. Ninguém saberá que existi.
Eu existi? Nós existimos? Não... definitivamente não. O hoje já acabou e ninguém existe amanhã. Eu nunca existi. Não há quem tenha existido.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Onde vais?

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"Onde vais Macário?
- Vou morrer!"

Onde vamos todos nós? Onde vai você, ó nobre Doutor, certo de que possui toda sabedoria? Onde vai você, ignorante aspirante da felicidade que, por sinal, possui felicidade? Todos seguimos em fila rumo a um abismo, o abismo do fim, da morte.
De pouco adianta toda a ciência, de pouco adianta toda a temperança e todo discernimento se iremos cair no mesmo buraco.
É ao verme, este operário das ruínas, que fica todo nosso conhecimento e toda nossa herança ilusória de felicidade... a pergunta é para que?
Por que buscar a felicidade como lobos buscando alimentos? Enfim... por qual motivo devemos buscar viver? Fora o instinto de vida (que pode ser o mesmo que instinto de morte) não encontro outra explicação, outro justificativa para essa vida tão vazia que possuimos. Mesmo quem julga ser completo é vazio, e sabe disso.

Por isso a resposta à pergunta onde vamos é: vamos morrer.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Reinado deserto

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Construo castelos em minha mente
Onde sou rei de um reinado vazio
Não tenho servos e nem rainha
Apenas um escravo: Eu mesmo.

Em uma terra acinzentada por lembranças
Chamuscada pelo árduo fogo da dor
Vazia pela eterna incerteza
Triste pela ausência de amor.

Meu reinado é rígido e forte
Belicamente protegido
Espiritualmente reforçado
Sempre derrota qualquer inimigo.

O rei e seu escravo guerreiam
Contra as hordas maléficas
Contra os sonhos malditos
E a luta vai chegando ao fim.

Rei solitário escravo de si mesmo
Rei infeliz inimigo de si mesmo
Hordas de lembranças e velhos sonhos...

Ao final da batalha nós vencemos!
Derrotamos nós mesmos!
Não resta sonho...
Nem reinado... nem saída...

Apenas escombros abandonados
Apenas lembranças esquecidas
De meu castelo, Reinado...
De minha vida.

{Escrito em 04/2007}

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Chuva de fim de tarde

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A chuva cai em silêncio
(assim)
... ... ...

Como as lembranças em minha mente
(são)

... ... ...

Memórias de tempos perdidos
(cada vez)

... ... ...

Mais rápido as gotas caindo
(mais dolorosas)

... ... ... ...

E o vazio de minh’alma preenchem
(e árduas como)
... ...

Nuvens negras que escurecem o dia
(o pesar...o ferir...o não-ser)

... ... ...

Escuras são as lembranças
(que tornam... ... ...
... ...Amarga essa vida vazia)

... ... ...
Amarga tarde de chuva
... ... ...
Amarga desesperança
... ...
A chuva chegando ao fim...

As águas escoaram tudo...

Limparam minha vida...

E regaram as rosas de meu

tumulo...

.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Ruínas

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"Meu coração, como um cristal, se quebre;
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrasa,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!"
{Augusto dos Anjos}

Infinitamente desmoronam casas, uma por uma vão caindo. Ruas inteiras, avenidas gigantescas, prédios enormes entupidos de gente. Tudo parece desmoronar dentro daqueles que conseguem criar um outro mundo, tão real quanto o mundo palpável, mas muito mais subjetivo, de fato.
Cegonha triste é a alma, que assiste a tudo isso melancolicamente, vendo ao cair de uma casa, o surgir de uma outra mais precária. Sempre o fim... e o inicio de um novo fim.
Sempre escombros, ruínas, restos. Sempre lembranças se esforçando para serem esquecidas. Sempre o sempre de sempre.
Cegonhas tristes não podem sentir febre. O coração delas é de cristal inquebravel. Talvez o sangue que aquece suas veias seja de fogo, impossível de congelar-se; por isso conseguem assistir às ruínas de modo indiferente, sempre com a certeza de que haverá novas construções prontas a tornarem-se novas ruínas.
O coração é quebrantavel, a carne adoece facilmente e morre, mas não existe inverno àqueles que têm alma em brasa. O frio é necessário, mas sempre supérfluo. É sempre passageiro e não é capaz de transcender os limites da mente; está sempre vinculado às decepções, ao contrário da alma que está sempre vinculada às verdades que ela própria inventa... e, definitivamente, frustração nenhuma é verdade eterna. Ruínas permitem novas construções.
Coisas construídas em chãos sólidos são desmoronáveis. Por isso não faço mais planos racionais; a razão tende a enlouquecer quem anseia por vida em abundância.
Construo castelos no céu. E tais castelos são de areia, ou melhor, de poeira de rubi. São castelos frágeis aparentemente, mas na verdade são rígidos e divinamente protegidos. Cegonhas tristes são anjos lá, e o sangue que me abrasa se torna o sangue que purifica, revigora, e torna real algo abstrato e pouco valorizado como “amor”.
Quero continuar para sempre vendo desmoronarem casas dentro de mim... mas os castelos que construo no céu que há em mim, jamais desmoronarão.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Um dia (quase) estranho

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''Todas as noites, um segundo antes de afundar, pensava — onde quer que você esteja, em qualquer região da minha mente, no mínimo interstício, na fímbria do pensamento, frincha da memória, dobra da fantasia, faixa vibratória passada presente futura, aqui vou eu ao seu encontro, meu bem amado.''
{Caio F.}

Será que há maneira melhor de acordar?
O dia está cinza, apesar do sol; as obrigações me persuadem a fazer algo, mas a gripe do fim de semana só faz com que eu queira fazer nada (a febre é bastante verdadeira).
De que importa? Tudo parece superficial quando recebemos algo tão lindo. Principalmente se a pessoa que manda tal coisa é aquela que você mais estima, mais quer bem, mais ama e considera, e mais próxima tem, apesar dos quilômetros de distância.
Assim hoje, que tinha tudo para ser um dia estranho como tantos outros dias estranhos, foi salvo. Salvo mais uma vez pela força de um sentimento; sentimento este que pode sim ser dito com palavras... apesar de elas deixarem no peito um gostinho de. Esperança? Felicidade? Saudade? Tristeza?..... sei lá. Fica um gosto de algo mais.
Hoje o dia não será estranho... não será não. Graças ao texto que recebi. E graças à reciprocidade (tão rara de achar) de sentimentos que compartilho com alguém.

Obrigado, IC.

domingo, 19 de abril de 2009

Manhã

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Iremos realmente ter uma manhã?
É tudo tão simples como o findar de um dia?
Posso ver que dias são como montanhas
E podem ser altos demais para se ver além.

Como andar qual água? - seguindo o fluxo
Como criar asas e apenas voar? - como pássaro.
A manhã deve ser um lugar muito famoso...
Do qual eu nunca ouvi falar.
Será que está no fim das águas?
Será que está nas asas que não tenho?

Algum alpinista já chegou no topo da manhã?
Responda-me!
Algum marinheiro anda como água?
Responda-me!
Algum sábio dos céus, por favor
Me responda onde jaz esse lugar
Chamado manhã...

Manhã...
Iremos realmente ter uma?

sábado, 18 de abril de 2009

Do Amor...E outros demônios

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Segure a mão de meu interior e siga-me
Para as trevas onde enxergamos mais; ao chegar
Dispa sua exuberante alma e entregue-a por inteiro
Para que a luz invisível que exalamos possa
Reluzir em nossos corações ansiosos e agonizantes;
Antes que a chama se apague, dispa sua alma
Desnude o mistério de seus olhos e
Dê-me mais de ti.


Descarte superficialidades e vãos devaneios;
Abrace a escuridão de amar sem pensar e nem pesar.
O momento seguinte nunca chegará se nos prendermos
No agora... Aqui neste lugar oculto e sinistro
Aqui em meu ígneo coração
Mergulhe no fogo; arrebate meu viver
Acorrente-me em seus braços; dispa sua alma e
Dê-me mais de ti.


Sacratize esse sublime sentimento
Eternizado em dois mesmos espíritos.
Quando tudo parecer acabado, provarei
A eternidade ao tocar seu coração puro e
Certificar-me-ei que minha alma e tudo que
Parecia perdido dentro da escuridão
Estava desde sempre protegido em você,
Oh, semente divina do Amor!
Su’alma é minh’alma; Seu coração é meu coração;
Dispa sua exuberante alma, abrace e ilumine a escuridão;
Dê-me mais de mim mesmo...
Dê-me mais de ti.

Alegoria da desintegração

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Minha alma é uma caverna vazia e inabitável.
Meu corpo é matéria vã em constante perecimento.
Minha mente não deixa que eu seja crente em nada...
Definitivamente, nunca haverá em que crer uma alma oca;
Uma caverna inexplorada e escura onde nem morcegos
Buscam moradia
Alguns ecos vindos de longe sobrepassam a escuridão,
A matéria, mente... Não consigo compreender
O melancólico ruído que vaga pelo vazio funéreo.

Meu coração é gelo pontiagudo preso no alto
Imóvel, frio, infalivelmente petrificado pela eterna
Certeza de que não vale a pena ser coração em brasa
Mais vale o vazio ao ingrato sentimentalismo
Gerador de tantas e tantas frustrações e desencantos que
Insistem em morar
Junto à alma; ecoando ao longe estão todas
Minhas agradáveis recordações que são muito amargas
Para que eu distinga entre boas ou ruins de reviver...

Meu viver é um aglomerado de nada
Nada que é a síntese do tudo refletido
No espelho que está frequentemente a me julgar de massa fétida
Em constante putrefação e morta antes mesmo de nascer.
Os sons ecoam mais forte quando o gelo de meu peito
Consegue queimar e furar profundamente meus
Pensamentos
São ecos e reflexos de duvidas que nunca encontrarão respostas.
O ardor gélido torna mais claro a tonalidade do som inaudível,
Sinto meu corpo congelar... ouço indo e vindo a musica
De um nome distante demais para ser alcançado. Então

Algo invade a obscura e solitária caverna,
Exalando paradoxos e gritando alto, muito alto
A ponto de quebrar o gelo pontiagudo preso
No topo da gruta vazia.
Estilhaços caem por toda parte,
A mente doe a alma ensurdece.
Restam apenas pedaços
De sangue solidificado pelo chão seco.
Os ecos silenciam. Os gritos calam. O escuro aumenta.

Quem conseguiu invadir a caverna em treva
Fazendo barulho em demasia, destruindo o que eu não tinha?
Agora nem a dor fatigante em meu coração
Eu sinto mais
Vazio por saber que o gelo não derrete...
Apenas quebra e se espalha em miseráveis cubículos.
Se ao invés de som houvesse luz,
Haveria então água ao invés de gelo.
Assim talvez
Tudo em mim estaria mais puro...
Mas não Há quem culpar por isso.
Culpado é o liquido sólido
E frágil de alucinações de um coração insano.

O que sobra agora? Só um nome e uma sede eterna
Que tento saciar com o vinho feito de sonhos, o vinho
Que alegra o coração exaurido do herói.
Meu coração nunca encontrou alegria vivendo em mim,
Só resta, então, aceitar viver...
Viver desintegrado,
Utilizando todos os cubos de estilhaço para refrigerar
Taças de sanguíneos sonhos... para isso serve
Um coração destroçado: tornar melhor o vinho
E nada mais.

Primeiro Abismo

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Ele... nove, dez anos talvez.


Nove ou dez anos que pareceram tão fúteis e sem sentido quanto à vida das pessoas maiores de vinte. Mas ocorreria algo naquele fim de semana. Ele tinha certeza disso, como que premeditando que a luz divina, emancipadora dos grilhões da mediocridade, iria realmente brilhar nele.

Sábado chega. Acorda ansioso. Tentando concentrar-se ao máximo para que não tenha jogo do Brasil (algum desenho japonês da “Manchete” incucou-lhe que isso [concentrar-se] dá certo). Jogos de futebol sempre foram seus principais inimigos pois, uma vez que houvesse algum no fim de semana (e sempre eram no fim de semana, são até hoje), au reveur qualquer possibilidade de passeio.
Dependia do pai para sair. E o pai dependia do ter,ou não jogo de futebol.
É triste depender dos pais para quase tudo. Porém ele já fazia miojo sozinho, ia e vinha da escola sozinho e, às vezes, até cuidava sozinho de sua irmãzinha mais nova enquanto a mãe saia sabe-se lá deus para onde.

Dependia dos pais para passear. Para ir comprar roupas (sempre àquelas que a mãe achava mais “fofas”). Camuflava sua falta de amigos locando cartuchos do seu master system, e para isso também dependia dos pais; e até para encher a mente com crendices, que foram destruídas não muito tarde, e para reprimir por mais tempo seu fascínio por coisas relativas à morte (sempre desejou um colar de caveira, mas o pai insistia que era coisa do diabo)... Enfim, para se entreter ou fingir entreter-se e para crer em mentiras ele dependia dos pais.

Para viver precisava dos pais. Para pensar também, pois era quase obrigado a crer que a voz de seus genitores era onisciente. Em muitas coisas ele era moldado pelos pais, mas sentia-se maduro por ter algumas tarefas que os outros não tinham, e, paradoxalmente se sentia imaturo por aceitar ser aquela projeção idealizada de filhinho quieto e educado adorador de vídeo-game com forte tendência a tornar-se um nerd suicida.
Apesar de todas as dependências fraternais, nunca reclamava e, ao contrário, se exaltava em silêncio quando podia ir ao fliperama do shopping, à praça, ou mesmo ao portão da casa junto ao pai. Nada disso ocorreria esse sábado, seria diferente, ele sabia, não iriam a nenhum lugar costumeiro, iriam a algum lugar inexplorado, divino, sagrado, maldito e profano.
Não teve jogo da seleção e nem outro qualquer. Todos se arrumaram após o café. A mãe calada (ele só descobriu o porquê desse calar-se subitamente da mãe, quando completou dezenove anos). A irmã indiferente. Tudo pronto. E o carro saiu da garagem rumo a...

Ele não quis saber dessa vez...

Preferiu o suspense, pois certo estava de que haveria algo grande naquele fim de semana.
O carro seguia firme. Sob o sol escaldante eles iam e iam. Ele imaginando porque será que todo sábado tem que ter sol; o pai silencioso; a mãe fechada; a irmã indiferente.

Até que inesperadamente de modo já esperado (ele sabia...), o pai disse que estavam indo ao zoológico e que no retorno do passeio passariam na locadora para buscar alguns jogos. Surpreso, ele desanimou. Não queria ver animais estúpidos e queria ainda menos ver pessoas estúpidas felizes por verem animais presos; presos e estúpidos por não se rebelarem atacando-as.

Sentiu ânsia. A Ânsia da Frustração. Era motivo aparentemente pequeno, mas sua alma tinha sede e a água que não recebeu parecia ter vertido-se em fogo. Só queria voltar pra casa e desejar nunca mais sair de lá. Notou então que a frustração gera algo mais potente dentro de nós que a exaltação. Sentiu-se sozinho. Cogitou profundamente o que era naquele momento, o que viria a se tornar, quando poderia ter uma namorada, teria mesmo uma namorada? Quem iria querer alguém que vive enclausurado? Enclausurado... surgiram em sua mente muitos animais presos. Presos e observados por outros animais superiores. Quase hipnotizado, ele viu a si próprio enjaulado e observado por seus pais, sua irmã, sua escola, o mundo, o mundo dos outros, um mundo estranho a ele! Sentiu quase que um desespero. E desse desespero saiu um soluço, seguido de choro convulsivo, desconcertante de tal modo que até o silêncio da mãe fez-se quebrado. Perguntaram o que ele tinha... mas ele não sabia. Já estava perdido dentro de tudo que sentiu. Já não se importava com zoológico, animais, namorada, maturidade nem nada; só queria que ali, dentro de cada lágrima abafada que escapava, pudesse escapar também esse vazio cheio de vontade de...

Ele não quis saber dessa vez...

Nas outras vezes havia sempre um motivo concreto. Dessa vez ele não sabia nem se havia motivo. Sentia como se alguma coisa dentro dele quisesse fugir, quebrar os muros de uma prisão invisível que sempre existiu ali,em algum lugar desconhecido por ele, nele. A mãe tentou consola-lo, em vão.

E seguiu o trilhar silencioso de lágrimas até que chegaram em Itaquera, “zôo-municipal”.

Primeiro o leão! Disse o pai.

E foi feita conforme a vontade do pai. Todos seguiram rumo ao leão... Ele cabisbaixo, mergulhado em si próprio, a mãe calada, a irmãzinha indiferente e o pai com falsa exaltação.O que ele esperava? Sentia que algo ocorreria, e... será que não ocorreu algo? Ele começava a se perguntar.

Chegam ao grandioso, sem graça e covarde leão. O “rei” da natureza estava dormindo dentro duma pequena gruta, parecida com a caixa de papelão que costumamos colocar para dormirem os filhotes. O rei dorme. O rei está preso e é covarde. Tudo parecia se relacionar a ele. Já não estava mais agüentando. A cada nova erupção de lágrimas silentes, a mãe dizia que esse menino precisa se tratar, sem paciência, chama-o de louco. O pai retrucava, não suportava mais o nervosismo da mãe. A irmã se contagiou com o clima e começou a chorar ruidosamente. E o leão dormia dentro da gruta.
O passeio terminou sem ter sido começado. Tudo por culpa dele, que havia perdido-se dentro de si mesmo. Estava cego. Sim, tinha certeza de que estava cego e sentia que dentro de si havia um quarto sem janelas, que diminuía conforme seus olhos iam abrindo. Conforme ele ia vendo o que era realmente tudo que o cercava, o quarto ficava mais estreito e ele, ou a alma dele, ficava mais espremido, mais dorido, mais vazio, mais sem sentido...Pode notar que era isso que tinha que acontecer, e se consolou dessa maneira.

Achou bom mergulhar em si. Percebeu que existia um abismo gigantesco dentro dele. E, enquanto caminhavam rumo ao carro para irem embora, ele ergueu a cabeça e olhou. Viu além um vendedor maltrapilho vendendo bonés com hélices. Não apenas um chapeuzinho...Ele viu mais que um ridículo boné de criança. Viu a salvação. Viu animais voando naquelas hélices; viu a si próprio escapando para bem longe dentro de si. Instintivamente pediu ao pai o boné no lugar da locação dos cartuchos. Sem entender, nem indagar, o pai lhe deu o boné... Ele voou, sorriu, anestesiou sua mente e nunca, nunca, nunca mais teve medo de nadar no oceano do vazio que tende a ser desperto por frustrações...

A mãe falava alto com o pai, o pai brigava com a mãe, a irmã chorava incessantemente, mas ele não se importava. Poderia acabar o mundo, ele estava seguro viajando sobre as hélices de um boné comprado num zoológico.
Depositou em tal boné o credito de passaporte ao mundo de dentro, que até então ele não conhecia. E graças a esse boné bobo, pode ter uma solidão agradável durante a infância. O problema surgiu depois, quando habituado a navegar em seu interior sem o boné (perdeu-se um dia), pode ver que dentro dele existiam demasiados abismos... insondáveis e muito mais complexos que o primeiro abismo, descoberto aos nove ou dez anos.

Há pouco tempo ele saiu de um abismo árduo como o hades... Hoje mesmo ele se vê lançado noutro que parece imensurável... Querendo ou não querendo, ele sempre sabe quando o dia vai clarear ou lhe derrubar dentro de si mesmo... E ele sabe que dói bastante quando se está perdido e que pode haver abismo dentro de abismo, uns mais escuros que outros. Sabe também que é demasiado bom quando se aprende a andar dentro da alma; principalmente quando se pode levar alguém especial junto.

Foi o boné com hélice que lhe mostrou que toda realidade é criada por nós mesmos. O mesmo boné ensinou-lhe a lidar com o amor... e a frustração.

Claro!... Ele sabia que algo ocorreria naquele fim de semana.
E continua sabendo até hoje.