sexta-feira, 31 de julho de 2009

O ventilador de livros

{Um sonho... que não era bem um sonho.}

I


Pacha era jovem, apesar de soturno e detestavelmente insípido.
Adorava livros, principalmente os de filosofia, com os quais passava horas a fio sentado na frente de casa, lendo e filosofando. Sempre após as leituras, encontrava dentro de si respostas para tudo: acreditava que o amor era um estado inferior de espírito, mesmo sem nunca ter amado; acreditava que a morte era a única coisa que existia de agradável na vida e, paradoxalmente, a única coisa que não deveríamos buscar, pois ela nos buscaria cedo ou tarde. Resumindo, questões existenciais e sentimentais não eram problemas para ele, que se punha sempre acima do certo e errado, mesmo quando acabava caindo no senso-comum, o que não era raro.

"Pacha, o café está na mesa." – exclamou Dna. Opina, mãe.

Uma das poucas atividades que faziam ele largar a solidão dos livros era o café... muito café, seguido de cigarro de folhas de morango. Em segredo, o rapaz acreditava que a fumaça extraída de tais folhas servia para libertar-lhe a "sombra" e guiar sua alma à liberdade.
Largou o livro ali mesmo, na frente da casa, e entrou para tomar seu café.
A casa era humilde, digna casinha de interior litorâneo: um quintal repleto de mudas de árvores tropicais, e no centro a construção aconchegante com rede na espaçosa varanda e algumas cadeiras de balanço em volta.

Chegando na cozinha, Dna. Opina, a mãe, não estava lá. Havia apenas o café ainda fumegante no bule e um pote com açúcar sobre a mesa. Ele não deu por falta e nem se importou. Adorava ficar só e a degustação de seu café poderia ser mais bem apreciada sem o silêncio ruidoso da mãe (sim, ela costumava fitar-lhe em silêncio, o que era mais estrondoso que uma horda de mães matracando).
Prosseguiu tranqüilamente: serviu-se, degustou, repetiu, repetiu, repetiu e logo depois foi ao fundo da casa apanhar folhas secas de morango. Havia vários morangueiros no quintal e não foi difícil encontrar quantidade de folha suficiente para seu fumo vespertino. Enrolou um cigarro e foi à frente da casa novamente, retomar sua leitura.
Alguma coisa aconteceu logo após a primeira tragada. O livro estava diferente, a frente da casa estava diferente. Tentando ignorar, folheando, viu que todas as páginas estavam com as letras se modificando e circulando como um tufão. Soltou o livro num impulso, assustado, e sentiu, junto ao susto, uma acalentadora sensação: uma espécie de brisa que nunca sentira antes.

Sentiu-se confuso; não sabia se isso estava sendo alucinação, que ele nunca teve antes, do fumo de morango ou se estava enlouquecendo.
O que acontecia nos fundos de sua casa, ele não conseguia ver, estava atordoado e parcialmente imobilizado. As árvores que estavam em frente cresciam, na calçada, desfolhavam e morriam subitamente. A casa, sem ser vista, desabava e era reconstruída constantemente. O clima passava do mais intenso calor ao mais ardiloso frio. Ele sentia tudo, percebendo toda incoerência, porém tentava não se afetar.
Num esforço, Pacha olhou para trás, viu algum bicho que nunca tinha visto antes, saindo dentre os morangueiros no fundo do quintal; a casa estava em ruínas e o livro aberto em sua mão, escapou flutuando no ar como balão de gás hélio, girando cada vez mais rápido. Há um estrondo. O barulho de tão intenso e atormentador fez com que ele caísse desfalecido no chão. Dormiu... mas não sonhou.

Logo, os olhos do rapaz começaram a abrir...
O "bicho" pequeno que perambulava pela plantação de morangos se aproximou de Pacha, que estava estirado no chão feito morto, dormindo com frágil respiração. O jovem sentiu-se envelhecido, como se houvesse algo novo correndo em suas veias. Com a vista ainda meio embaçada, notou ao seu lado um pequeno feto, com pés pequenos nos quais se equilibrava sem dificuldade, mesmo sem ter dedos formados. O corpo disforme estava coberto de sangue e na barriga gorda o longo cordão umbilical, extenso como aquelas mangueiras de lavar quintal.
Olhando mais atentamente, Pacha viu que o cordão estava inserido junto à veia de seu braço. Não se espantou com isso. Apenas arrancou-o. Cada vez mais incerto de si, tentou colocar a mente no devido lugar.
Estaria ele sonhando? Estaria morto? Não encontrava respostas. Lembrou-se que lia. Mas não sabia dizer quanto tempo estivera dormindo.
Com o corpo dolorido, levantou-se, sem deixar de ficar atento ao feto sombrio, que estava apenas segurando o cordão que não parava de jorrar sangue no chão, olhando Pacha com expressão... expressão de feto.

A casa estava em ruínas.
Após levantar, ele andou sobre os escombros; procurando algo, sem saber se havia o que procurar. Pisou nos tijolos e pedras e tudo se desfez, como fossem cinzas apenas. Aos lados dos escombros, havia uma vegetação fria: árvores sem folhas, mortas, e morangueiros repletos de folhas secas.
Pacha ria. Achava irônico tudo aquilo, mas sua graça se perdeu quando viu entre os destroços da casa, exatamente onde ficava seu quarto, quanto tudo ainda era inteiro, a prateleira onde ele guardava seus livros. Estava inteira, e ele , ao ver livros, lembrou do estouro forte que o levou à inconsciência. A situação ficou mais confusa quando ele se aproximou e viu Dna. Opina, a mãe, estirada no chão, dentro de um círculo único onde havia vegetação viva.
Fedia.
Dna. Opina estava se decompondo e já não tinha muita carne. O contraste entre vegetação viva e a carne podre da mãe parecia uma pintura bizarra. Aproximando, encontrou vida nos cabelos enormes da mãe, que crescia lentamente, mas visivelmente, e em algo estranho na parte que outrora havia sido uma barriga: uma bolsa com um feto dentro. Não um feto como o que estava parado, estático na frente da casa, mas um feto limpo e já com feições de bebê, com o cordão umbilical ligado, como raiz de árvore, ao solo verde do círculo.
Sem saber o que aconteceu, Pacha sentiu pela primeira vez desespero. Saiu do quintal e desatinou a correr pela rua escura e vazia. Quando deu por si, notou que não estava saindo do lugar. Todas as casas da vizinhança se pareciam com a casa dele. Todos os lados pareciam replicas idênticas de um lado único. E na frente de todas as casas havia um Pacha... como num espelho.

Não havia o que fazer.
Sentou-se então, cabisbaixo na frente da casa em ruínas e permaneceu lá até sentir o sangue do feto sendo esguichado sobre sua cabeça. O sangue, de alguma maneira incompreensível, estava afogando-o.
Sentiu necessidade de sair dali, de se proteger de alguma maneira... como?
Já estava sem agüentar a falta de ar.

Novamente por impulso, correu e caiu fraco, ao lado do corpo de Dna. Opina. Descobriu que ali dentro do círculo, o feto coberto de sangue tornava-se invisível, assim como o corpo da mãe.
Ficava apenas a imagem do outro feto, limpo, no centro do círculo e a estante sempre igual e contrastante, repleta de livros.
Decidiu mexer nos livros, pensando que "se eles fizeram tudo isso, eles poderão normalizar as coisas, quem sabe". Não lembrava qual livro estava lendo antes de tudo, por isso escolheu um qualquer, cujo titulo estava num idioma que ele não conhecia.
Folheou... folheou... folheou... e mais uma vez viu letras girando. Sentiu enjôo, uma ânsia muito forte. Não agüentando mais, vomitou sangue... e enquanto vomitava, o cordão do feto, esguichando novamente, fazia com que o sangue voltasse à sua boca.

Estava fora do círculo. Estava na frente da casa. O livro girando no ar enquanto ele vomitava incessantemente...
Com todas as forças, Pacha tentou tapar a boca. Conseguiu, porém sentiu-se fraco. Viu letras vindo em sua direção como fossem ventos. O vento que o livro emanava eram as palavras. Indecifráveis devido à velocidade que eram lançadas.
Subitamente, um estouro mais forte que o primeiro.
O corpo do rapaz pareceu despedaçar-se com a explosão... antes de desfalecer, ele viu pela última vez o feto coberto de sangue.

II
Ondas...
Pacha escutou barulho de ondas.
Ao despertar, sentou-se e vislumbrou o imenso oceano escarlate. Reconheceu que estava na praia próxima da casa e logo após a recordação, num piscar de olhos, viu o mar tornar-se normal novamente. Viu o sol aparecer e sentiu um calor diferente, que o incomodava.

Levantou com um forte desejo de voltar a casa... mas qual era a casa? Ele não acreditava morar ali. Não acreditava morar em lugar algum. O que estava fazendo ali?...
Andou pelas areias. Sem rumo. Até que encontrou, sem querer, sua noiva, Sensata e sua amiga Dúbia.
Sensata lia sentada na areia, enquanto Dúbia tomava sol, ambas de frente para um ventilador... de livros.
Não se sabe o motivo pelo qual Pacha achou natural aquele ventilador estranho, no meio da praia. Também não se sabe de onde ele tirou uma noiva. Nem ele sabia tê-la, mas sentiu algo forte dentro de si mesmo quando a viu e soube quem era... mesmo sem conhecê-la antes. O mesmo se diz em relação à amiga: ele não sabia dela... até encontrá-la e reconhecê-la sem ter conhecido antes.

A filosofia, a insipidez, a solidão, o barulho dos estouros.
Pacha queria se desfazer de tudo isso. Não queria lembrar. Queria apenas descansar um pouco. Queria ler algo consolador e, pensando nisso, sentou-se ao lado de Sensatez, que lhe recebeu com um caloroso beijo saudoso. Ele então pegou o livro que estava na areia.

Mal-estar. Outra vez uma sensação ruim se apossou do rapaz confuso: o ventilador não estava ventilando o suficiente; ao invés de refrigerar, ele estava causando náuseas, e sentimentos estranhos. Não pensou duas vezes: precisava colocar outro livro nele... mas qual?
Pediu o de Sensatez. Ela recusou-se alegando estar profundamente necessitada daquela leitura. Olhou então para Dúbia, mas ela não estava lendo; estava apenas tentando conversar.
Só restou o seu. E ele não buscou alternativas, apenas concluiu que se tivesse pensando antes, nem teria se dado ao trabalho de pedir o de Sensatez. Colocou então o livro, sem necessitar nenhuma técnica especial. Apenas aproximou-se dele e encostou. O problema foi o que houve logo em seguida...
O ventilador explodiu, como se estivesse havido algum curto-circuito, mas não havia fio algum por ali... Os livros subiram alto, muitos, e depois caíram como chuva. Nenhum acertou Pacha, Sensatez, ou Dúbia. Quem acabou sendo atingido foi o interior de Pacha que buscava, após tantos tormentos, instantes de paz.

Livros não paravam de cair, até que um deles atingiu Lay, que estava num quiosque e não havia sido notado pelos três outros presentes. Lay caiu no chão com uma ferida profunda na cabeça; perdeu muito sangue.
Pacha , desorientado, sabia que não havia socorro por ali. Onde ele estava mesmo? Sentiu-se perdido. Desesperançoso. Pôde apenas fechar os olhos do amigo; ele sabia que aquele era seu amigo. De onde? Ele teve amigos? Não tinha nenhuma resposta, mas sentiu que sim. Tudo ali parecia ser movido por sensações; nenhuma lógica. Nenhuma razão.

Frio, deixou o amigo morto onde estava. Sentou-se novamente perto de Sensatez e lá permaneceu, apesar da sensação caótica causada pela ausência do ventilador de livros.
Pouco mais tarde, após momentos de silêncio (rompido, às vezes, por Dúbia e sua ânsia de conversa), surge um homem chamando por Pacha. Ele reconheceu esse homem: era seu pai. Mas ele não vivia com sua mãe? Lembrou-se, então, que sua mãe havia se transformado num cadáver pútrido guardião de um feto.

O pai, Dr. N.A., foi chamar Pacha para lembrá-lo que era necessário viajar. Voltar aos estudos.
Não podiam esperar mais, ele tinha que partir naquele exato momento. Mas... como? De que maneira poderia ele ir embora, se o ventilador de livros estava quebrado? Definitivamente, não conseguiu entender o que o ventilador tinha a ver com sua viagem, mas sabia que tinha algo crucialmente importante, não podia viajar sem ele estar funcionando.
Dr. N.A. tinha uma certa aptidão com eletrônica, mas apesar de todo o esforço, não conseguiu consertar; aquilo não era algo consertavel e muito menos era eletrônico. Exaustos , ambos decidiram desistir e voltar pra casa. O pai foi na frente, Pacha foi atrás junto de Sensatez e Dúbia.
Enquanto prosseguiam no caminho, nada aconteceu de diferente. Continuaram andando, até chegarem na frente da casa que era a mesma. Estava reconstruída, porém inacabada, sem a varanda e com pouco acabamento. Pacha não achou aquilo estranho e entrou.

Sentiu falta do pai. Ele não havia chegado. Procurou por Sensatez e Dúbia e ambas haviam sumido. Pacha estava só, ou pensou, por um momento, estar só.
Decidiu ir até o quarto onde costumava dormir e quando chegou lá, encontrou Dúbia deitada, como enferma. Ela percebeu a presença, chamou-lhe e disse que "você chegou no momento exato; se não houvesse alguém aqui, eu estaria morta". Não conseguiu compreender o que aquelas palavras queriam dizer, mas como tudo estava incompreensível naquele lugar, ele não deu grande ênfase a isso. Olhou pela janela e, para sua surpresa, viu Sensatez encostada num cercado de madeira, conversando com uma garota... Ímpia! O nome surgiu em sua mente. Sentiu que também conheceu em algum lugar aquela pessoa, porém a sensação não foi nem um pouco parecida com a de quando encontrou as outras duas.

A ânsia voltou. O calor do lugar estava atormentando. Precisava vomitar. Precisava de ajuda. Procurou por Dúbia, mas ela não estava mais na cama. Não houve opção; vomitou ali mesmo, formando uma enorme poça de sangue no centro do quarto. Em seguida sentiu muita fome, afinal, fazia tempo que não se alimentava e precisava de alguma maneira recuperar as energias perdidas por causa do longo vômito.
Apoiando-se nas paredes, dirigiu-se até a cozinha onde encontrou o mais absoluto vazio, tanto material quanto espiritual. O ar abafado não permitiu que permanecesse lá; voltou e no caminho, precisamente no corredor entre a sala e o quarto, encontrou mais um conhecido, era Infortúnio, que estava há tempos com o caderno onde Pacha escrevia versos (havia pedido emprestado para adaptar alguns em letras de músicas para a banda que ele tinha). Pacha sentiu suas forças se recomporem um pouco ao ver que o caderno estava nas mãos de Infortúnio. Porém este, só cumprimentou, jogou o caderno embaixo da prateleira que ficava no corredor e entrou em direção à cozinha. Logo atrás dele começaram a surgir muitas pessoas. Todas iguais: mesma veste, mesma fisionomia, mesmos gestos. Uma massa de mais ou menos trinta pessoas idênticas em tudo.

III

Não era possível continuar dentro da casa. O ar era irrespirável e a aglomeração não permitia muitos passos; Pacha não parecia ser notado pelas pessoas. Foi notado apenas por Dúbia, que apareceu enrolada numa toalha (justificou-se alegando que tinha ido tomar banho, pois estava se sentindo mal. Esse foi o motivo de ter desaparecido subitamente da cama) carregando um prato com alguns pedaços de carne. A moça ajudou-lhe a sair de dentro da casa e quando chegaram ao lado de fora, viram Sensatez, Ímpia e um homem de terno, correndo atrás do feto. Era aquele mesmo feto que quase o afogou com sangue, lembrou-se. Os três corriam incessantemente atrás do feto que, de modo estranho, conseguia ser mais ágil e astuto que todos. Aquela imagem não incomodou Pacha e Dúbia, que estavam na frente da casa, petiscando o prato de carnes e olhando com uma certa alegria a cena que ,apesar de grotesca, parecia divertir o grupo que participava.
Permaneceram assim, até o momento em que Ímpia percebeu estar sendo observada e dirigiu-se até eles:

"Pacha! Que bom ver você após tanto tempo. Fico muito feliz em ver que você está bem, apesar dessa sua tão freqüente expressão de cansaço. Creio que você está se perguntando o que diabos estou fazendo aqui e nem precisarei dizer..."

Sensatez interrompeu:

"Olha na TV. Você conhece uma cantora e eu fico extremamente feliz de saber que meu noivo conhece uma cantora tecnocrata. Ela veio gravar o cd aqui, pois é onde há maior número de adoradores do Naja".

Pacha lembrou do vínculo que teve com os tecnocratas. Teve realmente?... sentiu ter tido. Odiou a idéia absurda da existência do Naja. Sabia que Sensatez estava sendo irônica em suas palavras e por isso nem se deu ao trabalho de prosseguir com o assunto. Olhou pela janela e viu uma propaganda do cd de Ímpia, na tv.
A música era péssima. Misturada ao calor, à fraqueza, à falta de sentido daquilo tudo, gerava uma sensação de desespero e Pacha não sabia o que fazer.
O homem de terno continuava seguindo o feto, que agora estava com seu cordão umbilical servindo de regador às plantas. Enquanto fugia, o feto ia esguichando sangue por toda a parte. O caderno de Pacha estava molhado com sangue... pela janela ele viu que a poça de vômito havia tomado metade da casa. Tudo estava inundado pelo sangue e o caderno boiava.

Precisava do caderno, tinha certeza. Ele tinha que fazer um outro ventilador de livros, não era possível continuar vivendo sem um, e sabia que o caderno serviria como peça crucial para a construção bizarra.
Dúbia não estava mais na frente da casa... estava dentro dela, apenas com as roupas intimas, nadando naquele rio de sangue. Por algum motivo, o liquido não esvaia pela porta. Parecia haver uma espécie de barreira invisível que bloqueava a passagem de dentro para fora.
Pacha pulou a janela. Sensatez ficou ao lado de fora, junto à Ímpia, olhando e rindo de algo que ele não sabia o que. Nadou, sem conseguir respirar e com dificuldades para trafegar em meio àquele aglomerado de gente (alguns aparentemente mortos boiando; a maioria apenas fazendo movimentos idênticos uns aos outros). Conseguiu apanhar o caderno... mas sentiu que não aguentaria o caminho de volta. Não havia ar... Não havia... Não...

Afogando-se no sangue, como última força antes de fechar os olhos, ele abriu o caderno... Não havia palavras. Apenas folhas vermelhas que começaram a girar, causando um tipo estranho de redemoinho.
Ele foi absorvido pela pressão que o caderno causou sobre o líquido e quando fechou os olhos, eles não fecharam, abriram. Parecia que estavam fechados antes do afogamento e só agora abriram realmente.

Caído no chão, Pacha viu um céu vermelho. Olhou ao lados e reconheceu onde estava; estava no mesmo lugar, porém, a casa estava em ruínas novamente. Estava tudo vazio outra vez, com apenas o feto parado ao seu lado, o cordão injetado em seu braço e , entre as ruínas, a prateleira próxima do corpo da Dna. Opina.
Sentiu vontade de chorar. Vontade de morrer. Vontade de acabar com toda essa loucura de uma vez! Com uma pedra, começou a bater no feto, sem desinjetá-lo de si próprio. Bateu muitas vezes com força, na cabeça, até que o crânio rachou e o vermelho deu lugar ao cinza da massa cerebral que impregnou todo o ambiente.
Cansado, sem mais o que fazer, foi olhar a mãe. Ele ainda estava com a pedra suja nas mãos; não pretendia soltá-la. Estava também com o feto ligado a si próprio, arrastando-o onde quer que fosse.

Dna. Opina continuava a mesma: fedendo, pútrida, com a bolsa de feto. Os livros na prateleira continuavam os mesmos. Em desespero, pegou todos e começou a rasgá-los, a lançá-los no chão. Um buraco começou a se abrir...
Muitos livros começaram a girar ali, no centro do único lugar onde havia vegetação viva. O ar estava se tornando melhor. O corpo de Dna. Opina estava retomando vitalidade. Pacha sentiu-se tragado e não se esforçou para não ser. Ia cair, mas antes de cair segurou o caderno que estava no chão. Abriu-o pela última vez e conseguiu ver as palavras... arremessou o caderno no ventilador que surgira no chão.

"Pacha, o café está na mesa!"

Foram as últimas palavras que ele escutou antes do estouro.
Após isso, Pacha teve a mente apagada. Não lembrava mais absolutamente nada. Não sabia nada. Houve apenas sensações e, a primeira sensação foi a de susto. Teve medo do barulho do próprio choro, nunca tinha escutado barulho nenhum antes.
Quanto mais gritava, mais assustado ficava e mais gritava. Até que sentiu algo confortador: mãos carinhosas lhe encobriram (ele não sabia que eram mãos), algo quente (o calor de uma pele) tocou-lhe. Parou então de chorar. Se acalmou. Não sentiu calor, nem frio, sentiu-se bem, apenas.

E continuou bem...
até o momento em que abriu os olhos.

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