segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Isabela

0 comentários
Noite passada tive uma visita. Inesperada, mas desde sempre desejada. Uma mulher chamada Isabela, cujas feições transcendem o divino e o espírito resplandece volúpia. Seus olhos são puros e repletos de um ar santo, mas sua boca entreabre portais infernais. Sim, não sei se ela está no céu ou no hades, mas independente de onde estiver, sempre será a rainha colonizadora de meu corpo e coração.
Não sei se foi sonho. Não sei o que aconteceu ao certo. Apenas posso narrar que suas vestes eram de seda branca, realçando as curvas de cada-centimetrozinho-de-meu-desejo, e que seu aspecto, apesar de pálido, estava repleto de uma energia sem igual. Seu fôlego congelava minhas orelhas enquanto ela gemia sem barulhos a cada toque de minhas mãos infames – Isabela, mulher da minha vida que mora num abrigo obscuro, sozinha, mas que hoje veio mais uma vez entregar-se a mim.
A febre consumia minha alma enquanto eu cantarolava uma música sem sentido, talvez na língua dos anjos, ou dos demônios, quem sabe. Isabela ascendia em chamas sobre mim, sendo tocada, sendo possuída, sendo devorada por minha voracidade de quem ama sem poder ter. Em ritmo mais forte, escutei o som de algo marmóreo se chocando ao chão. Enxerguei estrelas, mesmo estando sob os tetos de minha casa, creio eu, sonhando, acordado, tanto faz. Vi crucifixos diversos, imagens gélidas de anjos e algumas camas frias repletas de voyeurs escondidos em alguns buracos no chão.
Continuei no ritmo de Isabela, beijando-a, tocando-a, escrevendo nas linhas de suas curvas a derradeira poesia da eternidade; sendo padre proclamando a extrema unção a alguém que exige algo mais que humanidade, algo mais que imagem, suspiro, voragem e momento. Cada fragmento era um todo, cada sensação era deleite, cada tormento era disperso, cada ilusão vinha do corpo. Em êxtase, num turbilhão de sensações absurdas, entre anjos, demônios, estrelas, mármores e vouyers sinistros do subsolo, ascendi com Isabela, derramando no infinito um sonho impossível que se realizou num momento.
Acordei. Nem sei que horas eram. Nem sei que sonhos vivenciei e que realidades abdiquei. Sei apenas que o frio de um inverno palpável veio a tona e, ao contrário de tudo que senti em mim, Isabela estava realmente morta.
Batidas constantes na minha porta prenunciavam um fim inimaginável. Algo coçava por entre minhas calças – eram vermes, daqueles brancos que aparecem em carne podre – e o fedor era nauseante. Não entendi absolutamente nada. Não quis entender nada.
Recebi a noticia de que o tumulo de Isabela havia sido violado e que os traços de necrofilia eram visíveis. Confusão. Minha mente esteve em turbina, meu corpo ardendo com aqueles bichinhos percorrendo minhas entranhas; até que, finalmente, entendi que eu era o necrófilo – todos que amam verdadeiramente são necrófilos -. Entendi também que os vermes são representantes da paixão, pois tudo consomem. E que o amor tem um cheiro pútrido, como uma mistura de esperma e morte. Não sei o que será de mim, mas creio que, como Deus, o amor morreu faz tempo… apenas tentei ressuscitá-lo.

Marta

0 comentários


Marta está cansada. Dia exaustivo na casa em que trabalha como diarista. Patrões estúpidos, manias estúpidas, desperdício infinito de coisas que seriam demasiado úteis a ela própria. Será que essa gente não pensa que há gente que precisa de “coisas” no mundo? Vez em quando, Marta leva para casa algumas coisas de seus patrões. Nunca perceberam, pois é grande a fartura. É domingo e Marta está cansada. De um cansaço diferente do apenas físico. Marta não quer ser mais Marta, mas precisa levar algo para sua casa, com seus 3 filhos e seu neto – aquela vadia de minha filha! -. Limpa a casa em silêncio. Sem o pagode costumeiro em seu celular com mp3, que ganhou dos patrões no lugar do décimo terceiro que nunca recebeu em anos. O farfalhar da vassoura torna-se a melodia em que a poeira dança, sem nunca se acabar. O tapeta pesado, com a estampa de um grandioso leão, é o destino da poeira que se esconde e leva fagulhas da alma cancerígena de Marta. É preciso encontrar mais poeira, em cima dos móveis, atrás da porta, dentro do guarda roupas, em cima do guarda roupas. Não há mais o que limpar.
Hora de procurar algo de recompensa pelo trabalho, algo que não seja mais apenas um batom ou um pacote de macarrão holandês. A caixa em cima do guarda roupas, nunca foi aberta. Deve haver algo de valioso por lá. E de fato há. O reflexo do cano exageradamente lustrado mostrou o rosto de Marta enrugado, feio, de velha que não tem mais nada a mostrar ao mundo. Apenas um espelho. Marta colocou-o em sua bolsa. Em 30 minutos os patrões chegam e ela precisa sair antes disso – eles gostam de privacidade ao chegar -. Ônibus com várias Martas (e Martos). Ela sorri sozinha ao pensar no masculino de seu nome. Quer se olhar novamente no reflexo do cano que pegou dos patrões, mas decide esperar. Um sorriso sempre pode esperar. Uma angústia não.
É noite. A casinha está com a luz de fora acesa e de longe se escuta o ruído das crianças que são um tufão dentro de um cômodo. A luz é cinza. Não tem reflexo. O espelho tem reflexo. Ela tira de sua bolsa, não vê seu rosto, pois está escuro. Apontando em direção a casa, a luz brilha refletida como fosse uma estrela em sua própria mão. Quer sorrir, mas espera. Abre a porta barulhenta. A criançada, que fica sozinha após o horário da escola, corre para abraça-la. Como quem abraça um saco de poeira. Poeira que se espalha por toda a pequena casa. Mais trabalho para Marta. Sempre limpar, arrumar, cantarolar e ser feliz. Marta sorri, finalmente. As crianças querem algum doce, ou mesmo apenas olhar um pacote diferente de macarrão roubado da casa de seus patrões. Ela retira o espelho. Algum brinquedo? Após se olhar, sorrir novamente, e erguer alto as mãos para que as crianças não alcancem, um estalo surdo. Depois um silêncio.
A poeira parece mais brilhosa dessa vez. Mais colorida. Um cinza escarlate. Orgulhosa de seu trabalho, a vassoura não farfalha mais, ela explode. É a alma de Marta explodindo e só deixando poeira no ar. Mais três estalos, mais três sorrisos e é hora de arrumar a bagunça. Pano, cloro, vassoura e novamente sem pagode, a poeira sai e não vai pra baixo de nenhum tapete, pois não há tapete. As crianças dormem e ela as lava dormindo, coloca-as em sua cama – uma cama para as 4 -. Quase tudo pronto para o jantar, só resta uma coisa para arrumar. Experimentar o batom roubado semana passada, talvez arrume a cara amassada de Marta. Ela passa e depois se olha no espelho novo. Há muito que arrumar. E, como com a vassoura, marta toca uma última nota a fim de deixar tudo limpo. Toda a poeira acumulada na vida da mulher se estende, espalha pela casa, pela rua, pelo mundo. Marta precisa limpar tudo, rápido! Mas anoitece. E não há quem vá limpar a sujeira que a alma de Marta espalhou.

terça-feira, 29 de maio de 2012

1 comentários
Após tantos medos
Após tanto estardalhaço
Após tantos fracassos
Vemos que o que vale mesmo
É o silêncio...
E o tempo ardente...
Passado.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Autoajuda

0 comentários
Controle: levantar cedo; tomar qual tipo de café; tomar banho após escovar os dentes; fazer a barba; ir mais cedo à aula; assistir ao telejornal; almoçar de acordo com o dinheiro do bolso; comprar cigarros; ler ficção ou teoria; ver pornografia; escrever para a namorada; ligar para a mãe;

Descontrole: levantar contra a vontade; tomar o café que tiver na padaria; tomar banho para não feder durante a jornada do dia; fazer a barba para dar aula; chegar sem atraso; buscar informação;

Você tem medos. Medos te angustiam, seja em qual for o nível: tua mulher trabalha sozinha e, de fato, o chefe é um gostosão; você trabalha e, por mais que tente evitar, sua secretária é uma delicia. Mas você tem opção? De que valem aquelas curvas sugestivas e os gestos provocantes? De que vale sua preocupação com as mulheres, afinal de contas, como bem disse Zibia Gasparetto no livro que nunca lerei: ninguém é de ninguém. E você? É de alguém? Se culpa em vão por desejos que qualquer ser humano teria? Oras... Já passou do tempo de acordar e se ver tal qual você é. Fato é que você não pode ter controle da gangrena, do caminhão que está em movimento, constante e inevitável vindo em sua direção para te atropelar. Mas você pode ter controle sobre seus atos, mesmo tendo tendências animais, aliás, tendências "não-animais", tendências maquinais, por falta de uma alma. Não ser animal; ser máquina sucateada que se esforça para controlar suas próprias engrenagens, eis a sina.

Você tem domínio sobre sua própria vida. Você tem controle! Você pode optar ser um maldito hipócrita e ter vida dupla, ou você pode ser um maldito hipócrita consigo mesmo e não ter vida nenhuma. De que vale seu relacionamento? Você não é o que você consome, como diz algum filme ai, e você consome seu relacionamento. Você não é o seu emprego, mas seu emprego, por menos dinheiro que te dê, é o que te faz feliz. Feliz? Isso não existe e você sabe. Mas tudo bem. É sua vocação, assim como o tédio é a vocação da humanidade. Nunca chegar a lugar nenhum, mas se iludir sempre sobre argumentos triviais, maquinais.

Que saco é fazer qualquer coisa nesse mundo de lama feito de gente também de lama. Que merda é tentar se refugiar de antigos elixires divinos sobre o pretexto de fugir de uma ansiedade. Não existem gênios sóbrios, logo, vivemos em um mundo robótico. E por quê? Porque existem antidepressivos materiais, psicológicos, ilusórios. Gênios são doentes...ou suicidas. De um ou outro modo, vale muito a pena o risco de ser genial. Não vale é viver de modo ridículo em situações ridículas, com gente ridícula vivendo uma rotina de zoológico: esperando apenas pela visita que, talvez, jogará algum amendoim aos animais mecânicos.

Acorde! Veja na sua frente a ferida, e olhe longe sem alcançar médico. “Acostuma-te a lama que te aguarda”, diria o poeta. Mas a vida não é um eu-lírico. É um eu-fatal. E fatalmente, você opta entre o depressivo e o antidepressivo; entre o amor e a solidão; entre a paixão e a ausência; entre a angústia e a gangrena, mesmo sabendo que a angústia pode te gangrenar, o amor te fazer ainda mais só, e a paixão também te afastar cada vez mais de si mesmo. A solução é levantar, tomar banho, apanhar, esperar pelo amendoim, ignorar curvas que de tão repetitivas deixaram de ser apetitosas, filosofar em vão em algum boteco e depois arrancar a carne podre que te fere, arrancar a raiz da vida. Você pode ser um gênio. Encher a cara de depressivos, sim, de tudo que deprime. Ou se fazer de normal, entorpecendo-se de uma esperança fingida; esperança no nada; fé de máquina sucateada.