Marta está cansada. Dia exaustivo na casa em que trabalha
como diarista. Patrões estúpidos, manias estúpidas, desperdício infinito de
coisas que seriam demasiado úteis a ela própria. Será que essa gente não pensa
que há gente que precisa de “coisas” no mundo? Vez em quando, Marta leva para
casa algumas coisas de seus patrões. Nunca perceberam, pois é grande a fartura.
É domingo e Marta está cansada. De um cansaço diferente do apenas físico. Marta
não quer ser mais Marta, mas precisa levar algo para sua casa, com seus 3
filhos e seu neto – aquela vadia de minha filha! -. Limpa a casa em silêncio.
Sem o pagode costumeiro em seu celular com mp3, que ganhou dos patrões no lugar
do décimo terceiro que nunca recebeu em anos. O farfalhar da vassoura torna-se
a melodia em que a poeira dança, sem nunca se acabar. O tapeta pesado, com a
estampa de um grandioso leão, é o destino da poeira que se esconde e leva
fagulhas da alma cancerígena de Marta. É preciso encontrar mais poeira, em cima
dos móveis, atrás da porta, dentro do guarda roupas, em cima do guarda roupas.
Não há mais o que limpar.
Hora de procurar algo de recompensa pelo trabalho, algo que
não seja mais apenas um batom ou um pacote de macarrão holandês. A caixa em
cima do guarda roupas, nunca foi aberta. Deve haver algo de valioso por lá. E
de fato há. O reflexo do cano exageradamente lustrado mostrou o rosto de Marta
enrugado, feio, de velha que não tem mais nada a mostrar ao mundo. Apenas um
espelho. Marta colocou-o em sua bolsa. Em 30 minutos os patrões chegam e ela
precisa sair antes disso – eles gostam de privacidade ao chegar -. Ônibus com
várias Martas (e Martos). Ela sorri sozinha ao pensar no masculino de seu nome.
Quer se olhar novamente no reflexo do cano que pegou dos patrões, mas decide
esperar. Um sorriso sempre pode esperar. Uma angústia não.
É noite. A casinha está com a luz de fora acesa e de longe
se escuta o ruído das crianças que são um tufão dentro de um cômodo. A luz é
cinza. Não tem reflexo. O espelho tem reflexo. Ela tira de sua bolsa, não vê
seu rosto, pois está escuro. Apontando em direção a casa, a luz brilha
refletida como fosse uma estrela em sua própria mão. Quer sorrir, mas espera.
Abre a porta barulhenta. A criançada, que fica sozinha após o horário da
escola, corre para abraça-la. Como quem abraça um saco de poeira. Poeira que se
espalha por toda a pequena casa. Mais trabalho para Marta. Sempre limpar,
arrumar, cantarolar e ser feliz. Marta sorri, finalmente. As crianças querem
algum doce, ou mesmo apenas olhar um pacote diferente de macarrão roubado da
casa de seus patrões. Ela retira o espelho. Algum brinquedo? Após se olhar,
sorrir novamente, e erguer alto as mãos para que as crianças não alcancem, um
estalo surdo. Depois um silêncio.
A poeira parece mais brilhosa dessa vez. Mais colorida. Um
cinza escarlate. Orgulhosa de seu trabalho, a vassoura não farfalha mais, ela
explode. É a alma de Marta explodindo e só deixando poeira no ar. Mais três
estalos, mais três sorrisos e é hora de arrumar a bagunça. Pano, cloro,
vassoura e novamente sem pagode, a poeira sai e não vai pra baixo de nenhum
tapete, pois não há tapete. As crianças dormem e ela as lava dormindo,
coloca-as em sua cama – uma cama para as 4 -. Quase tudo pronto para o jantar,
só resta uma coisa para arrumar. Experimentar o batom roubado semana passada,
talvez arrume a cara amassada de Marta. Ela passa e depois se olha no espelho novo.
Há muito que arrumar. E, como com a vassoura, marta toca uma última nota a fim
de deixar tudo limpo. Toda a poeira acumulada na vida da mulher se estende,
espalha pela casa, pela rua, pelo mundo. Marta precisa limpar tudo, rápido! Mas
anoitece. E não há quem vá limpar a sujeira que a alma de Marta espalhou.
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