sábado, 18 de abril de 2009

Primeiro Abismo




Ele... nove, dez anos talvez.


Nove ou dez anos que pareceram tão fúteis e sem sentido quanto à vida das pessoas maiores de vinte. Mas ocorreria algo naquele fim de semana. Ele tinha certeza disso, como que premeditando que a luz divina, emancipadora dos grilhões da mediocridade, iria realmente brilhar nele.

Sábado chega. Acorda ansioso. Tentando concentrar-se ao máximo para que não tenha jogo do Brasil (algum desenho japonês da “Manchete” incucou-lhe que isso [concentrar-se] dá certo). Jogos de futebol sempre foram seus principais inimigos pois, uma vez que houvesse algum no fim de semana (e sempre eram no fim de semana, são até hoje), au reveur qualquer possibilidade de passeio.
Dependia do pai para sair. E o pai dependia do ter,ou não jogo de futebol.
É triste depender dos pais para quase tudo. Porém ele já fazia miojo sozinho, ia e vinha da escola sozinho e, às vezes, até cuidava sozinho de sua irmãzinha mais nova enquanto a mãe saia sabe-se lá deus para onde.

Dependia dos pais para passear. Para ir comprar roupas (sempre àquelas que a mãe achava mais “fofas”). Camuflava sua falta de amigos locando cartuchos do seu master system, e para isso também dependia dos pais; e até para encher a mente com crendices, que foram destruídas não muito tarde, e para reprimir por mais tempo seu fascínio por coisas relativas à morte (sempre desejou um colar de caveira, mas o pai insistia que era coisa do diabo)... Enfim, para se entreter ou fingir entreter-se e para crer em mentiras ele dependia dos pais.

Para viver precisava dos pais. Para pensar também, pois era quase obrigado a crer que a voz de seus genitores era onisciente. Em muitas coisas ele era moldado pelos pais, mas sentia-se maduro por ter algumas tarefas que os outros não tinham, e, paradoxalmente se sentia imaturo por aceitar ser aquela projeção idealizada de filhinho quieto e educado adorador de vídeo-game com forte tendência a tornar-se um nerd suicida.
Apesar de todas as dependências fraternais, nunca reclamava e, ao contrário, se exaltava em silêncio quando podia ir ao fliperama do shopping, à praça, ou mesmo ao portão da casa junto ao pai. Nada disso ocorreria esse sábado, seria diferente, ele sabia, não iriam a nenhum lugar costumeiro, iriam a algum lugar inexplorado, divino, sagrado, maldito e profano.
Não teve jogo da seleção e nem outro qualquer. Todos se arrumaram após o café. A mãe calada (ele só descobriu o porquê desse calar-se subitamente da mãe, quando completou dezenove anos). A irmã indiferente. Tudo pronto. E o carro saiu da garagem rumo a...

Ele não quis saber dessa vez...

Preferiu o suspense, pois certo estava de que haveria algo grande naquele fim de semana.
O carro seguia firme. Sob o sol escaldante eles iam e iam. Ele imaginando porque será que todo sábado tem que ter sol; o pai silencioso; a mãe fechada; a irmã indiferente.

Até que inesperadamente de modo já esperado (ele sabia...), o pai disse que estavam indo ao zoológico e que no retorno do passeio passariam na locadora para buscar alguns jogos. Surpreso, ele desanimou. Não queria ver animais estúpidos e queria ainda menos ver pessoas estúpidas felizes por verem animais presos; presos e estúpidos por não se rebelarem atacando-as.

Sentiu ânsia. A Ânsia da Frustração. Era motivo aparentemente pequeno, mas sua alma tinha sede e a água que não recebeu parecia ter vertido-se em fogo. Só queria voltar pra casa e desejar nunca mais sair de lá. Notou então que a frustração gera algo mais potente dentro de nós que a exaltação. Sentiu-se sozinho. Cogitou profundamente o que era naquele momento, o que viria a se tornar, quando poderia ter uma namorada, teria mesmo uma namorada? Quem iria querer alguém que vive enclausurado? Enclausurado... surgiram em sua mente muitos animais presos. Presos e observados por outros animais superiores. Quase hipnotizado, ele viu a si próprio enjaulado e observado por seus pais, sua irmã, sua escola, o mundo, o mundo dos outros, um mundo estranho a ele! Sentiu quase que um desespero. E desse desespero saiu um soluço, seguido de choro convulsivo, desconcertante de tal modo que até o silêncio da mãe fez-se quebrado. Perguntaram o que ele tinha... mas ele não sabia. Já estava perdido dentro de tudo que sentiu. Já não se importava com zoológico, animais, namorada, maturidade nem nada; só queria que ali, dentro de cada lágrima abafada que escapava, pudesse escapar também esse vazio cheio de vontade de...

Ele não quis saber dessa vez...

Nas outras vezes havia sempre um motivo concreto. Dessa vez ele não sabia nem se havia motivo. Sentia como se alguma coisa dentro dele quisesse fugir, quebrar os muros de uma prisão invisível que sempre existiu ali,em algum lugar desconhecido por ele, nele. A mãe tentou consola-lo, em vão.

E seguiu o trilhar silencioso de lágrimas até que chegaram em Itaquera, “zôo-municipal”.

Primeiro o leão! Disse o pai.

E foi feita conforme a vontade do pai. Todos seguiram rumo ao leão... Ele cabisbaixo, mergulhado em si próprio, a mãe calada, a irmãzinha indiferente e o pai com falsa exaltação.O que ele esperava? Sentia que algo ocorreria, e... será que não ocorreu algo? Ele começava a se perguntar.

Chegam ao grandioso, sem graça e covarde leão. O “rei” da natureza estava dormindo dentro duma pequena gruta, parecida com a caixa de papelão que costumamos colocar para dormirem os filhotes. O rei dorme. O rei está preso e é covarde. Tudo parecia se relacionar a ele. Já não estava mais agüentando. A cada nova erupção de lágrimas silentes, a mãe dizia que esse menino precisa se tratar, sem paciência, chama-o de louco. O pai retrucava, não suportava mais o nervosismo da mãe. A irmã se contagiou com o clima e começou a chorar ruidosamente. E o leão dormia dentro da gruta.
O passeio terminou sem ter sido começado. Tudo por culpa dele, que havia perdido-se dentro de si mesmo. Estava cego. Sim, tinha certeza de que estava cego e sentia que dentro de si havia um quarto sem janelas, que diminuía conforme seus olhos iam abrindo. Conforme ele ia vendo o que era realmente tudo que o cercava, o quarto ficava mais estreito e ele, ou a alma dele, ficava mais espremido, mais dorido, mais vazio, mais sem sentido...Pode notar que era isso que tinha que acontecer, e se consolou dessa maneira.

Achou bom mergulhar em si. Percebeu que existia um abismo gigantesco dentro dele. E, enquanto caminhavam rumo ao carro para irem embora, ele ergueu a cabeça e olhou. Viu além um vendedor maltrapilho vendendo bonés com hélices. Não apenas um chapeuzinho...Ele viu mais que um ridículo boné de criança. Viu a salvação. Viu animais voando naquelas hélices; viu a si próprio escapando para bem longe dentro de si. Instintivamente pediu ao pai o boné no lugar da locação dos cartuchos. Sem entender, nem indagar, o pai lhe deu o boné... Ele voou, sorriu, anestesiou sua mente e nunca, nunca, nunca mais teve medo de nadar no oceano do vazio que tende a ser desperto por frustrações...

A mãe falava alto com o pai, o pai brigava com a mãe, a irmã chorava incessantemente, mas ele não se importava. Poderia acabar o mundo, ele estava seguro viajando sobre as hélices de um boné comprado num zoológico.
Depositou em tal boné o credito de passaporte ao mundo de dentro, que até então ele não conhecia. E graças a esse boné bobo, pode ter uma solidão agradável durante a infância. O problema surgiu depois, quando habituado a navegar em seu interior sem o boné (perdeu-se um dia), pode ver que dentro dele existiam demasiados abismos... insondáveis e muito mais complexos que o primeiro abismo, descoberto aos nove ou dez anos.

Há pouco tempo ele saiu de um abismo árduo como o hades... Hoje mesmo ele se vê lançado noutro que parece imensurável... Querendo ou não querendo, ele sempre sabe quando o dia vai clarear ou lhe derrubar dentro de si mesmo... E ele sabe que dói bastante quando se está perdido e que pode haver abismo dentro de abismo, uns mais escuros que outros. Sabe também que é demasiado bom quando se aprende a andar dentro da alma; principalmente quando se pode levar alguém especial junto.

Foi o boné com hélice que lhe mostrou que toda realidade é criada por nós mesmos. O mesmo boné ensinou-lhe a lidar com o amor... e a frustração.

Claro!... Ele sabia que algo ocorreria naquele fim de semana.
E continua sabendo até hoje.

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